sábado, 19 de maio de 2018

Discurso de Tomada de Posse do Presidente da Assembleia-Geral da AOFA 
Capitão de Mar-e-Guerra António Almeida de Moura 
( 5 de Maio de 2018 ) 

“Juro, como português e como militar, guardar e fazer guardar a Constituição e as leis da República, servir as Forças Armadas e cumprir os deveres militares. Juro defender a minha Pátria e estar sempre pronto a lutar pela sua liberdade e independência, mesmo com o sacrifício da própria vida.”

  Vivemos tempos conturbados, incertos, inseguros, instáveis. Perigosos.
  Como deveremos – todos, e não apenas os militares – entender, interiorizar, cumprir este Juramento?
  Uma primeira, e determinante, constatação é que este Juramento é feito individualmente. Isto quer dizer que é uma escolha que cada militar conscientemente faz, assumindo, com coerência as consequências dessa escolha até ao “sacrifício da própria vida”.
  Igualmente determinante é essa escolha ser publicamente assumida perante o Povo que cada militar jura defender.
  Com estas duas constatações presentes, importa abordar algumas questões que nos permitam encontrar resposta à pergunta inicial.
  Primeira questão. Cada um de nós, como Seres Humanos, se apresenta perante si próprio, e perante o Outro, os Outros, como sendo constituído por múltiplas identidades – sociais, culturais, genéticas, religiosas, familiares, profissionais. A relevância que cada um de nós atribui, e pratica, a cada uma dessas identidades expressa a nossa maneira de Estar e de Ser,
como resultado do modo como nos vemos, e desejamos que nos vejam, dentro da comunidade em que vivemos, e que reconhecemos como nossa. No entanto, o Juramento que cada militar faz impõe uma escolha limite: o sacrifício da própria vida secundariza definitivamente todas as outras identidades, incluindo a familiar. De facto, um militar é Filho, é Pai, é Irmão, mas estas identidades são ultrapassadas pelo seu Juramento.
  Segunda questão. O Juramento é feito perante todo o Povo. Este facto só tem uma interpretação possível: o Juramento é incompatível com qualquer tipo de discriminação, seja ela política, económica, religiosa, étnica, cultural, de género. Dito de outra forma, o “apartidarismo” que cada militar assume nesse Juramento não é apenas político, é total.
  Terceira questão. Cada militar tem nas mãos um Poder definitivo: o da morte. E se, por um lado, a sua morte é, no limite, assumida como “sacrifício da própria vida”, por outro lado, a defesa do Povo impõe, como limite, o matar outro Ser Humano.
  Estas três questões – exigentíssimas escolhas políticas e humanas – demandam uma sustentação inequívoca, poderosa, incontornável, em Valores não apenas reconhecidos como exteriores a si, mas Valores que cada militar interioriza como seus, isto é, nos quais e através da prática dos quais, se reconhece como Ser Humano Inteiro e Digno.
  Assim, e constatando que a identidade profissional secundariza todas as outras identidades, é imperioso encontrar os Valores profissionais que estejam sempre presentes na práxis militar, no cumprimento de qualquer missão.
  Estes Valores são três – Disciplina, Obediência, Coesão. Como Valores que são, não dependem das palavras por que possam ser inscritos num qualquer diploma ou lei. De facto:
- A Disciplina pratica-se. E pratica-se pela partilha em três níveis: entre pares; de subordinados para com superiores; de superiores para com subordinados.
- A Obediência cumpre-se. E cumpre-se não por imposição superior, mas por partilha das razões que sustentem a sua prática consciente.
- A Coesão constrói-se. Uma construção que só é efectiva quando concretizada e partilhada a todos os níveis.
  O que torna estes Valores profissionais em Valores humanos, o que os une para responder àquelas exigentíssimas escolhas é a sua partilha consciente entre todos os militares, sem excepção e sem diferenças de procedimentos ou prerrogativas.
  É esta assunção que, assentando no Reconhecimento, no Respeito e na Defesa recíprocos entre todos os militares como protagonistas reais e conscientes daqueles três Valores, permite que as Forças Armadas, como um todo, estejam permanentemente disponíveis para afirmar, e cumprir, o Juramento que fazem.
  Mas sendo as Forças Armadas detentoras desse Poder definitivo – morrer e matar – é crucial que se subordinem a um Poder superior, um Poder onde resida a vontade do Povo perante quem os militares afirmam o seu Juramento. Esse Poder superior é, num Estado Democrático e de Direito, o Poder Político.
  Resultando da expressão livre e democrática do Povo, através de eleições, o Poder Político – Governo, Assembleia da República, Presidente da República – assume o Poder subordinante do Poder definitivo que as Forças Armadas, os militares, detêm.
  No entanto, esses mesmo Poder Político depende, como expressamente impõe a Constituição da República, da “vontade soberana do Povo”. Quer isto dizer que o Poder Político não é substituto do Poder soberano do Povo. Dito de outro modo, a legitimidade para o exercício do Poder que resulta de eleições livres e democráticas não é ilimitada.
  Mais, a Autoridade para o exercício do Poder como consequência de eleições livres e democráticas, tem de ser Reconhecida, Respeitada e Defendida pela sua práxis concreta. Reciprocamente, sendo inquestionável que a Autoridade (qualquer tipo de Autoridade) é, sempre, indivisível e indelegável, é imperioso que o seu primeiro, e permanente, acto seja o de Reconhecer, Respeitar e Defender quem, de algum modo, se subordina a essa Autoridade. Sem o cumprimento constante deste acto fundacional, estaremos sempre em presença de uma qualquer forma de imposição, seja autoritarismo, seja ditadura.
  Uma Autoridade que impõe o seu Poder não gera Disciplina, nem Obediência, nem Coesão. Pelo contrário, gera subserviência, servilismo, fuga às responsabilidades. E revolta, para todos quantos, não abdicando da
prática e defesa dos Valores em que se revêem e reconhecem como seus, individual e colectivamente, os vêem desrespeitados e ofendidos.
  Importa relevar, no que aos militares especialmente respeita, que o Estatuto de Roma – que cria o Tribunal Penal Internacional, que define o que são os Crimes de Genocídio, os Crimes de Guerra, os Crimes contra a Humanidade, e que Portugal ratificou – impõe a “Responsabilidade criminal individual” para quem seja arguido num desses crimes (Artigo 25º); mas também a “Responsabilidade dos chefes militares e outros superiores hierárquicos” de quem for arguido nesses crimes (Artigo 28º); e ainda a “Decisão hierárquica e disposições legais” que situa o nível hierárquico da responsabilidade da decisão (Artigo 33º).
  Consideremos o Poder de Decisão, não divisível nem delegável, e consequente Responsabilidade, em dois exemplos de missões atribuídas a militares:
Primeiro: Uma missão de salvamento no mar. Perante a missão que lhe é cometida, o militar responsável pelo seu cumprimento avalia os meios materiais e os instrumentos que são colocados à sua disposição, e informa o seu superior hierárquico de que há deficiências, ou insuficiências, ou ambas, que, a não serem colmatadas, constituirão um risco de gravidade acrescida, pondo em causa o cumprimento da missão, e criando condições para a possibilidade real de os salvadores também virem a ser vítimas. A que nível hierárquico se situa a responsabilidade pelo que possa, de negativo, acontecer? Apenas dentro da hierarquia militar, significando isso que o Poder de Decisão sobre que missões são para cumprir reside nela e não no Poder Político? Ou o Poder Político, como Poder subordinante, mantém o Poder de Decisão mas, de uma forma pequenina e triste, passa a Responsabilidade dessa decisão para o Poder subordinado?
Segundo: actualmente são múltiplos, e por todo o mundo, os confrontos armados. Em muitos deles constatamos que um dos lados do confronto se serve de civis como “escudo humano”, ou mesmo de crianças com 9, 10 anos como “força avançada”. Tem sido veemente, por parte de governos, instituições e órgãos de comunicação social, o repúdio e a condenação de tais actos. Havendo Forças Nacionais Destacadas em territórios onde estes factos acontecem, este repúdio e esta condenação significam que os nossos militares não podem agir contra esses alvos, mesmo correndo o risco de serem vítimas de emboscadas e, por isso, de serem mortos, feridos, feitos
prisioneiros? Ou, pelo contrário, se confrontado com uma criança de 10 anos armada com uma arma que pesa quase tanto como ela, o militar deve abater esse “inimigo”, para não pôr em risco o cumprimento da missão? Quem define as circunstâncias, a proporcionalidade da força a ser usada, e contra quem, são os militares no teatro de operações? A hierarquia militar, isto é, o Poder subordinado? Ou o Poder Político subordinante?
  Os tempos conturbados, incertos, inseguros, instáveis, perigosos, que estamos a viver têm-nos dado fartos exemplos de decisões dos Poderes Políticos de todo o mundo à revelia dos Valores que identificámos como cruciais para o exercício do Poder definitivo que é o Poder Militar. Ou será que a “regra crucial” que deve presidir à tomada de decisão é “O que nós fazemos é necessário, adequado, e justifica-se. O que os Outros fazem não tem justificação credível, podendo até configurar-se como um crime”?
  Urge que todos nós tenhamos consciência de que não podemos absternos, por ignorância, desleixo, indiferença, ou intenção, de enfrentarmos estas questões. Disso depende a reciprocidade do Reconhecimento, do Respeito e da Defesa de cada um de nós, e de todos, como membros Responsáveis, Inteiros e Dignos da comunidade a que pertencemos. 
  A Associação de Oficiais das Forças Armadas assumirá o seu inalienável dever de participação activa neste debate imprescindível e urgente, por forma a fortalecer os Valores que sustentam o Juramento, que como militares, fizemos, fazemos, e honramos, perante o Povo a que nos orgulhamos de pertencer. 
  Viva a Associação de Oficiais das Forças Armadas!
  Vivam as Forças Armadas Portuguesas!
  Viva Portugal!