Crítica
do Pensamento Único: Como Pensar em vez de O Que Pensar
“Aprender O Que
Pensar” é a opção política que o Poder dominante nos impõe, “coisificando-nos”
através da “formatação”.
“Aprender Como
Pensar” é a opção que nos cabe tomar se não abdicarmos da nossa Humanidade.
Importa reflectirmos,
individual e colectivamente, sobre esta dicotomia, pois as opções que fizermos
serão fundamentais para o Futuro que ansiamos construir e que reconheçamos como
nosso.
Um “exemplo prático”,
exposto passo a passo, ajudar-nos-á a compreender a urgência com que devemos
assumir esta escolha, concretizando-a:
1. O Juramento de Bandeira que todos os
militares, individual e publicamente, fazem perante a Nação, contém, de forma
clara e inequívoca, a disponibilidade do “sacrifício da própria vida, se
necessário for”.
2. Esse “sacrifício da própria vida”
coloca-se dentro da defesa intransigente da Pátria e das suas instituições se
um inimigo contra ela atentar. Isto é, no mesmo Juramento o militar assume
“matar o inimigo, se necessário for”.
3. Nem o “sacrifício da própria vida”
resulta de o militar sofrer de uma qualquer patologia suicida, nem o “matar
outro ser humano” resulta de uma qualquer psicopatia assassina: ambas são
exigentíssimas escolhas que os militares fazem.
4. Escolhas que se fundamentam em
Valores, Princípios, Sentimentos que os militares reconhecem como seus,
individualmente, e como dos Nós a que pertencem e em que se revêem.
5. A Lei Orgânica do Ministério da
Defesa Nacional, Decreto-Lei nº 183/2014, de 29 de Dezembro de 2014, extinguiu
a Direcção-Geral de Pessoal e Recrutamento Militar e a Direcção-Geral de
Armamento e Infra-estruturas Militares, e criou a Direcção-Geral de Recursos da
Defesa Nacional. Quer dizer, os militares deixaram de ser Pessoas e passaram a
ser “recursos”: foram legalmente “coisificados”!
6. O actual Estatuto dos Militares das
Forças Armadas (EMFAR), Decreto-Lei nº 90/2015, de 29 de Maio de 2015, impõe o
“Dever de Isenção Política”.
7. Estes dois diplomas são coerentes
entre si, e complementam-se: “castrados politicamente” e “adequadamente
objectificados”, os militares passam a constituir um “rebanho dócil, acéfalo,
acrítico, autómato”, sempre disponível e obediente às ordens do Poder político.
8. No entanto, esta situação é
absolutamente incompatível com o Juramento de Bandeira: as exigentíssimas
escolhas que ele representa – o morrer e o matar em nome de Valores, Princípios
e Sentimentos assumidos como superiores à própria Vida – são escolhas
incontornavelmente políticas, e humanas, que só são possíveis de serem
concretizadas por seres humanos Inteiros e Livres, e não por “recursos
apolíticos”.
9. Como ultrapassar esta violenta
contradição? Alterando o EMFAR e a Lei Orgânica do MDN? Alterando o Juramento
de Bandeira? E se for este o caso, perante quem, ou o quê, os militares irão
jurar a Vida, a própria, e a dos outros seres humanos, os “inimigos”? E esse
Juramento será credível quando feito por um “recurso”?
10. Portugal ratificou, em 2002, o Estatuto
de Roma, que institui o Tribunal Penal Internacional. É, assim, uma Lei
Internacional a que o país está vinculado.
11. Nele encontram-se definidos o que
internacionalmente se reconhecem ser Crime de Genocídio (Art. 6º), Crimes
Contra a Humanidade (Art. 7º) e Crimes de Guerra (Art. 8º).
12. Também nele se encontra
explicitamente imposta a “responsabilidade individual” (Art. 25º) de alguém que
seja arguido de um desses Crimes. Desta forma, está afastada a possibilidade de
ser apresentado como argumento de defesa o “cumprimento de ordens”.
13. Impõe, ainda, uma “responsabilidade
acrescida” aos superiores hierárquicos (Art. 28º) desse arguido.
14. Tendo presente que as acções
militares levadas às suas últimas consequências – o confronto armado entre as
partes em conflito – têm demonstrado serem circunstâncias em que a
probabilidade de acontecerem crimes daquela natureza é alta; e lembrando o
General George Marshall – “Na guerra, em cada combatente há uma besta pronta a
quebrar os grilhões que a prendem, pelo que cabe a cada oficial mantê-la
dominada em si e nos seus homens” -; torna-se evidente que é imposto aos
militares que não sejam meros “recursos obedientes, acéfalos, acríticos,
autómatos, apolíticos”.
15. Assim, os dois diplomas que tanto
influem na vida dos militares são incompatíveis com o Estatuto de Roma.
Mas este “exemplo
prático” não é aplicável apenas aos militares. De facto, se é verdade que, no
limite, os militares fazem a guerra, esta é, no dizer de Clémenceau, Presidente
da França no pós-I Grande Guerra, “um assunto demasiado sério para ser tratado
apenas por generais”. Por outro lado, podemos também afirmar que, para o
Movimento das Forças Armadas, “a guerra é um assunto demasiado sério para ser
tratado apenas por políticos”.
No entanto, ambas as
afirmações são redutoras: “A guerra é um assunto tão sério que,
imprescindivelmente, nos diz respeito a todos”. Lembremos que nas duas Grandes
Guerras do século XX (como em todas as outras!), os mortos civis foram em muito
maior número que os mortos militares (embora todos seres humanos…). Recordemos,
igualmente, o que da guerra disse Paul Valéry – “A guerra é um massacre entre
gente que não se conhece para proveito de gente que se conhece mas não se
massacra”.
De facto, não podemos
reflectir sobre este “exemplo prático” isolando-o do todo que é a sociedade em
que vivemos, que desejamos democrática, em que nos sintamos inteiros e livres. Nesse
sentido, somos confrontados com questões a que, incontornavelmente, teremos de
dar resposta:
Escolher é um verbo
que praticamos diariamente, em múltiplos aspectos da nossa Vida. Imediatas ou a
mais longo prazo, as consequências dessas escolhas questionam-nos quanto à sua
oportunidade e aos seus resultados, em nós, e nas relações que temos – uma
escolha também! – com o Outro, com os Outros.
Quer isto dizer que
ao acto de escolher é inerente um certo grau de incerteza, que procuramos
ultrapassar buscando informações e definindo critérios de avaliação – de
circunstâncias, de coisas, de sentimentos, de objectivos – que nos permitam
sustentar, e justificar (perante nós próprios, perante os Outros), as escolhas
que fazemos.
Mas o universo dos
“Se” é vastíssimo: “Se” isto, “Se” aquilo, “Se” este, “Se” aquele, “Se” a
escolha tivesse sido outra … A incerteza que a escolha comporta é irmã gémea do
risco: a escolha feita poderá ter uma consequência, um resultado contrário,
imprevisto, anómalo, em relação ao que perspectivávamos, ao que desejávamos.
E se – de novo, “Se”!
– as circunstâncias forem de difícil avaliação, as coisas forem múltiplas e
diversas, os sentimentos forem contraditórios, então o nível do risco aumenta,
criando-nos preocupação, ansiedade, instabilidade, no acto de concretizarmos a
escolha.
Essa multiplicidade,
essa multi-diversidade estão, hoje, tão vincadamente presentes na nossa Vida,
que o nível de risco com que nos confrontamos é-nos cada vez mais pesado, quer
a escolha, as escolhas, a fazer se situem no âmbito do Eu ou no de um Nós em
que nos reconhecemos, e ao qual desejamos continuar a pertencer. Já não estaremos
a falar de instabilidade, mas sim de insegurança.
O mundo em que
vivemos é, de facto, incerto, instável, inseguro. Tanto que as informações e os
critérios de avaliação onde procuramos apoio para sustentar as nossas escolhas,
individuais e colectivas, se nos apresentam fortemente contraditórios, pondo-nos
a persistente dúvida sobre a nossa capacidade de levarmos por diante as nossas
escolhas.
Uma dúvida agravada
pela extrema complexidade, e conflitualidade, da realidade: a nossa limitada
capacidade individual de a entendermos, e interiorizarmos, na sua plenitude,
deixa-nos reféns da superfície das circunstâncias, dos acontecimentos,
levando-nos a refugiarmo-nos dentro do que para nós é imediatamente
compreensível, numa resposta à medida do que somos – com os nossos mitos,
fantasmas, medos, contradições. Ao mesmo tempo, sentimo-nos confrontados,
ameaçados até, pelo desconhecido, pelo diferente, por tudo o que possa implicar
envolvermo-nos mais profundamente, para além da superfície das coisas, na
procura do sentido que essa realidade - e as escolhas que sobre ela, e com ela,
façamos -possa ter, ou vir a ter, no caminho que percorrermos, individual e
colectivamente.
Torna-se-nos
necessário identificarmos que interdependências e inter-relações (do homem
consigo e com o Outro; do homem com a Natureza) aconteceram/acontecem que nos
permitam compreender de onde viemos, que caminhos percorremos, que escolhas
fomos fazendo, para chegarmos a este Presente inseguro, e para podermos
enfrentar, com ânimo, o desafio das escolhas a fazer para construirmos o
caminho, individual e colectivo, para o Futuro.
A busca desse nexo de
interdependências e inter-relações confirmar-nos-á que as escolhas que fomos
fazendo ao longo da Vida, como um Eu, como um Nós, não se sustentaram apenas em
análises frias e objectivas das causas, efeitos e resultados que definiam e
delimitavam cada uma dessas escolhas.
De facto, imaginação,
criatividade, intuição, sentimento, valores, princípios, acompanharam (com
maior ou menor presença activa) a Razão nessas escolhas. Contraditórias, e
tantas vezes desastrosas, estas foram sendo as escolhas da nossa Humanidade.
Porém, a evolução
científica e tecnológica alcançada no século XX (sobretudo a partir da II
Grande Guerra), remeteu a Razão para a fria lógica de um racionalismo
autoritário e manipulador, onde deixaram de caber essas expressões humanas.
Disse Einstein, há cerca de 70 anos: “É escandalosamente óbvio que a nossa
tecnologia excede a nossa Humanidade”. Um escândalo tão mais grave quanto a
tecnologia desenvolvida atingiu, e detém, com o poder nuclear, o poder de
destruição massiva, global. Escândalo também porque hoje detemos o
conhecimento, a capacidade, o poder para assegurar a construção de uma
Humanidade, de um Nós, onde não haja exclusões de nenhuma espécie e, no
entanto, as desigualdades e discriminações não cessam de aumentar.
Esta mesma fria
lógica (de interesses) reverteu a Ciência num cientismo que considera como seus
meros objectos de uso corrente, um planeta inteiro e os seres que o habitam,
humanos e não-humanos.
Esta fria lógica não
tem uma origem abstracta: é uma consequência poderosíssima do domínio do homem
sobre o homem e do domínio do homem sobre a Natureza. O racionalismo (o primado
da racionalização, subjugando a racionalidade) e o cientismo (a rentabilização
da Ciência através da alienação consumista) são apenas expressões mais “subtis”
do exercício de um Poder dominante. E mais sofisticadas se tornam quando a
técnica e a tecnologia que foram sendo desenvolvidas assumem a visibilidade
desse exercício do Poder, ultrapassando o seu estatuto de parceiras no
desenvolvimento humano, para desempenharem o papel, inicial, de condicionantes
e, posteriormente, de determinantes desse desenvolvimento.
O papel condicionante
é cumprido por uma burocracia rígida e autoritariamente implantada que,
impedindo que a imaginação, a criatividade a intuição, o sentimento, ao valores
e princípios, tenham lugar na análise e nas escolhas do Presente, impõem a
não-existência de quaisquer outras escolhas que não as do Poder dominante. De
pouco valerá sabermos que “a burocracia é a arte de converter o fácil em
difícil por meio do inútil” (Carlos Peraza) se, ameaçada, a burocracia do Poder
usa todos os meios e instrumentos, mesmo os mais ignóbeis, para manter a sua
posição hierárquica de primeira executante do Poder dominante.
Por sua vez, o papel
determinante usa o mesmo conceito (“Não Há Alternativa” – um conceito
intelectualmente desonesto, pois expressa, de facto, a escolha do Poder
dominante) e o mesmo agente (a hierarquia burocrática de topo) para que esse Poder
não seja ameaçado, mas também para que todas as escolhas, individuais e
colectivas, sejam apenas e só as que ele define como “necessárias, adequadas e
justas”. Procede, assim, a uma manifesta e impiedosa “colonização do Futuro”
(Daniel Innerarity). (Não foi isto que se passou, passa, com a Grécia? Não é
esta ameaça que nos é imposta, em permanência, por um Poder dominante, exterior
e iniludivelmente autoritário?).
Para este Poder
dominante, o mundo e os seres não-humanos são uma propriedade sua que usam de
acordo com as suas apetências e interesses; e os seres humanos são meros
objectos que produzem e que consomem, para seu benefício. Se os seres humanos
deixam de produzir, ou deixam de consumir, são objectos descartáveis; se não
produzem nem consomem são objectos elimináveis. (Não é isto que se passa com os
Refugiados, que fogem da destruição, da fome, da guerra, da morte, na Síria, no
Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Nigéria, no Sudão,…?)
Acontece, no entanto,
que a evolução tecnológica tem, entre muitas outras, uma consequência
“politicamente perversa”. Enquanto há 70 anos ainda seria credível dizermos que
“o Conhecimento que adquirimos na juventude nos acompanha por toda a nossa
Vida”, hoje isso é impensável: o “período de vida útil do Conhecimento
encurtou-se drasticamente”. É-nos imperioso estarmos disponíveis para a
Inovação constante (“o futuro é ontem!”), para o Aprender permanente.
Esta evolução
rapidíssima, e poderosa, confronta-se, hoje já, com a burocracia estereotipada,
incapaz de sair da sua “crença natural”: impor, custe o que custar, o stato quo do “Não Há Alternativa”.
Porquê? Porque hoje é impossível identificar O problema e A sua
solução, UMA causa e O seu efeito – algo que define, teórica e
estruturalmente, a burocracia.
De facto, hoje há
problemas que são causas E que são efeitos, e soluções que são efeitos E
que são causas, numa extensa rede de relações múltiplas e multi-diversas,
interdependentes, e inter-agindo permanentemente.
Esta complexidade vem
arrastando a burocracia nas mãos do Poder dominante para a incapacidade de
responder a tamanho desafio, a não ser pela violência (como na Grécia, como com
os Refugiados). Estes problemas complexos – ou “malévolos” – conduzem a
burocracia a dar-lhes “respostas claras, simples e erradas” (Henry L. Mencken).
A austeridade do tipo “Não Há Alternativa” é um exemplo de como essa burocracia
já não consegue esconder o domínio totalitário e desumano exercido pelo Poder
dominante.
Um domínio que se
mantém porque nos enreda num racionalismo órfão da imaginação, da criatividade,
da intuição, do sentimento, dos valores e princípios; porque nos agrilhoa a um
cientismo possessivo e fragmentador do Conhecimento; porque nos sujeita a uma
burocracia técnica desumana; porque nos objectifica, ao mesmo tempo que
transforma a tecnologia em sujeito da História; porque nos manipula,
ensinando-nos “o que pensar”, e assim “apascentar-nos” como rebanho dócil, acéfalo,
acrítico, autómato.
Para rejeitarmos esta
objectificação, é-nos imperioso, e urgente, reivindicarmos que “a idade dos
porquês” se prolongue por toda a vida. Mas, se é verdade o que disse Ortega Y
Gasset – “O homem é ele próprio e a sua circunstância” -, hoje somos
confrontados com uma constante profundamente desafiadora: as circunstâncias que
nos fazem ser mudam, movimentam-se, inquietam-nos permanentemente. Enfrentá-las
de corpo inteiro – com a Razão, com a Acção, mas também com a Imaginação, a Criatividade,
a Intuição, o Sentimento -, isto é, não aceitando passivamente que as nossas
circunstâncias nos determinem mas, pelo contrário, aceitarmos o desafio de com
elas dialogarmos, mudando-as, movendo-as para um caminho por nós, individual e
colectivamente, escolhido, numa inquietação sempre presente, sentindo que uma
“qualquer coisa está para acontecer … qualquer coisa que eu tenho que fazer …
essa coisa é que é linda” (José Mário Branco), será a nossa forma de
resolvermos esse confronto.
Nesta luta contra o
domínio da superfície das coisas, das circunstâncias que nos são impostas pelo
Poder dominante, é imprescindível fazermos as perguntas cruciais: Porquê? Para
quê? Quando? Onde? Por quem? Para quem? Com quem? Como?
Dito de outro modo: é
imperioso aprendermos “Como Pensar”.
A nossa opção é
difícil? Sem dúvida. Dura? Sim, muito. E é um acto subversivo, mas necessário,
adequado e justo.
Por seu lado, a opção
do Poder dominante é injusta, ditatorial e desumana.
Que escolha fazemos,
então?
(Texto apresentado em 14 de Setembro de 2016, na Galeria Verney, Oeiras, numa iniciativa do núcleo de Oeiras-Cascais da A25A. Posteriormente publicado n'"O Referencial", da A25A, saído em Outubro de 2016)
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