Dignidade Humana,
Soberania, Estado e Poder
Uma Reflexão
sobre as suas Interacções
A Constituição da
República Portuguesa afirma, no seu Artigo 1º (República Portuguesa)
“Portugal é uma
República soberana, baseada na dignidade da
pessoa humana e na
vontade popular empenhada na construção
de uma sociedade
livre, justa e solidária.”
Dissecando-o, podemos
constatar que contém uma definição – “Portugal é uma República soberana” -, e
um propósito – “a construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Para
ambos explicita dois inequívocos e determinantes conceitos que constituem as
suas bases de sustentação – a “dignidade da pessoa humana” e a “vontade
popular”.
Sendo a Constituição
o vértice superior da estrutura orgânica e da orientação prática – social,
política, cultural, jurídica, económica – da comunidade em que nos reconhecemos
e a que chamamos nossa, importa entendermos os significados daqueles conceitos.
Assim, e quanto à
“dignidade da pessoa humana”, poderemos acompanhar Immanuel Kant (1): “No reino
dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço
pode pôr-se em vez dela qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma
coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela
tem dignidade”.
E seguindo ainda Kant
(2): “Age de tal modo que trates a humanidade tanto na tua pessoa como na do
outro sempre e ao mesmo tempo como um fim e nunca simplesmente como um meio”.
O fim em si mesmo que
cada ser humano é exige o respeito por si próprio e, simultaneamente, o
reconhecimento do outro, de qualquer outro ser humano, como também um fim em si
mesmo.
Desta forma,
reconhecimento e respeito recíprocos assumem duas das vertentes imprescindíveis
do diálogo de cada ser humano com o Outro: a dignidade humana é um valor
intrínseco ao ser humano e determinante para a co-existência dos seres humanos.
Isto mesmo é expresso
no Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948:
“Considerando que o
reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos
seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da
justiça e da paz no mundo;”
bem como no seu Artigo
1º
“Todos os seres
humanos nascem livres e iguais em dignidade e em
direitos.”
Por outro lado, a
Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 2000, no seu Preâmbulo,
não foge deste rumo:
“Consciente do seu
património espiritual e moral, a União baseia-se nos valores individuais e
universais da dignidade do ser humano, da liberdade, da igualdade e da
solidariedade; assenta nos princípios da democracia e do Estado de Direito. Ao
instituir a cidadania da União e ao criar um espaço de liberdade, de segurança
e de justiça, coloca o ser humano no cerne da sua acção.”
para, no seu Capítulo I – DIGNIDADE – Artigo 1º, afirmar
“A dignidade do ser
humano é inviolável. Deve ser respeitada e protegida”.
Da dignidade humana
diz I. Wolfgang Sarlet (3) que é “a qualidade intrínseca e distintiva de cada
ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do
Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e
deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer acto
de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições
existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover a sua
participação activa e co-responsável nos destinos da própria existência e da
vida em comunhão com os demais seres humanos”.
Quer isto dizer que a
comunidade é constituída por um conjunto de seres humanos que reconhecem e
respeitam, em si próprios e em cada um dos outros, uma “qualidade intrínseca e
distintiva”, que designamos por dignidade humana. Ou seja, uma comunidade não é
um conjunto de seres uniformes, uma soma de seres indiferenciados, mas antes
uma multidiversidade de Eus, distintos nas suas capacidades de autonomia de
decisão em relação à sua própria vida, mas participantes activos no viver
comum, também ele pleno de decisões, sendo estas resultantes do diálogo
sustentado no valor que une esses diversos Eus, a dignidade humana.
É desta participação
activa no viver comum, deste diálogo permanente, intenso, tantas vezes tenso,
contraditório, mas sempre inteiro e livre, que resulta a vontade popular.
Vontade popular que toma forma a partir de um Passado em que todos os membros
da comunidade se revêem e reconhecem como seu; assumem um Presente partilhado e
solidário; e se propõem um Futuro comum, construído por todos de acordo com as
suas capacidades, numa reciprocidade e complementaridade de direitos e deveres,
de modo a se apresentarem perante todas as outras comunidades conscientes da
multidiversidade de Eus colectivos, também eles autónomos na sua capacidade de
decisão, mas participantes activos no viver comum colectivo.
A soberania será,
pois, a expressão de uma dignidade humana colectiva, não como uma uniformizante
soma, mas como uma pluralidade de expressões dessa mesma dignidade humana, que
se reconhecem e respeitam mesmo se constituem uma pluralidade de diferentes.
Voltando à Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia, podemos constatar que no seu Preâmbulo
está vertido o reconhecimento dessa inviolável dignidade humana colectiva que
designámos por soberania:
“A União contribui para a preservação e o
desenvolvimento destes valores comuns [citação anterior], no respeito pela
diversidade das culturas e das tradições dos povos da Europa, bem como da
identidade nacional dos Estados-Membros e da organização dos seus poderes
públicos aos níveis nacional, regional e local;”.
De igual modo a
Constituição expressa, de forma clara, no seu Artigo 2º (Estado de direito
democrático), este conjunto de valores fundacionais:
“A República
Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no
pluralismo de expressão e organização política democrática, no respeito e na
garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e
interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica,
social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”.
e também no nº 1 do seu Artigo 3º (Soberania e legalidade):
“A soberania, una
e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as normas previstas na
Constituição”.
Estes dois artigos
remetem-nos para o terceiro vértice da dialógica em cuja práxis sustentamos o
desenvolvimento pleno da nossa dignidade individual, como qualquer ser humano,
e, ainda, da nossa dignidade colectiva, como qualquer comunidade de seres
humanos – o Estado, isto é, “uma sociedade territorial juridicamente
organizada, dotada de soberania, objectivada na realização do bem comum”.(4)
Nesta relação
dialógica Indivíduo – Comunidade – Estado, “O Indivíduo constrói-se construindo
uma Comunidade que lhe sustente um sentimento de pertença. Por sua vez a
Comunidade constrói-se construindo Indivíduos solidários entre si, dentro de
padrões comportamentais reconhecidos e praticados por todos, dando-lhes uma
perspectiva de Futuro comum. Por outro lado, ambos constroem uma entidade, o
Estado, colocada ao seu serviço, para a sua defesa individual e colectiva, para
o desenvolvimento do seu bem-estar, também individual e colectivo, mas à qual é
concedido o poder de se fazer obedecer, de novo individual e colectivamente, no
caminho a percorrer para a edificação desse bem comum por todos desejado”. (5)
Importa relevar que a
concessão ao Estado do “poder de se fazer obedecer” não lhe permite usurpar
para si “a soberania que reside no povo”, na Comunidade. Nem o “aprofundamento
da democracia participativa” se esgota na construção dessa entidade: “…é
imperioso que os membros da comunidade, indivíduos e instituições, se revejam
nessa identidade do Estado assim constituído. A paz social interna, e o
reconhecimento externo, não fazem da comunidade um conjunto de actores
secundários e passivos, cuja função fique reduzida a permanecerem “habituados a
obedecer”, sacralizando o Estado como um super-ego individual e colectivo”. (6)
De facto, também
nesta área a nossa Constituição não deixa margem para dúvidas:
Artigo 22º (Responsabilidades das entidades públicas)
“O Estado e as
demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com
os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por acções ou omissões
praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que
resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”.
Artigo 48º
(Participação na vida pública)
“1. Todos os
cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos
assuntos públicos do país, directamente ou por intermédio de representantes
livremente eleitos.
2. Todos os
cidadãos têm o direito de ser esclarecidos objectivamente sobre actos do Estado
e demais entidades públicas e de ser informado pelo Governo e outras entidades
acerca da gestão dos assuntos públicos”.
Artigo 108º
(Titularidade e exercício do poder)
“O poder
político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição”.
Artigo 109º
(Participação política dos cidadãos)
“ A
participação directa e activa de homens e mulheres na vida política constitui
condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático,
devendo a lei promover a igualdade no exercício dos direitos cívicos e
políticos e a não-discriminação em função do sexo no acesso a cargos
políticos”.
Artigo 117º
nº1 (Estatuto dos titulares de cargos políticos)
“Os titulares dos cargos políticos
respondem política, civil e criminalmente pelas acções e omissões que pratiquem
no exercício das suas funções”.
Estes artigos da
Constituição demonstram, ainda, que o Estado não é uma entidade abstracta e
sacralizada (7): “…se é verdade que ela se consubstancia num aparelho
organizado, movimentado, orientado, não podemos esquecer que a condução destas
acções é feita por pessoas, isto é, por alguns membros da comunidade a quem os
restantes de algum modo confiaram a gestão de parte significativa da sua vida e
da sua perspectiva de futuro, individual e colectivo”. (8)
“Plurais e
contraditórios como são todos os seres humanos, as suas construções humanas –
neste caso Comunidade e Estado – são-no também. Daí que esta relação dialógica
Indivíduo – Comunidade – Estado seja extremamente complexa, contraditória,
problemática. E tanto mais quanto o factor que determina as acções de cada um
dos vértices nessa relação é o Poder”. (9)
Não é escopo desta
reflexão abordar a questão do Poder nas suas múltiplas formas e manifestações
nas áreas em que os seres humanos são actores protagonistas – política,
cultura, economia, ciência, justiça, etc. Mas é necessário partirmos do que
acima ficou expresso para uma, também ela parcelar, abordagem da componente
militar da Defesa Nacional, tendo presente algumas daquelas manifestações do
Poder que relevamos como essenciais para irmos mais fundo do que a superfície
do nosso presente nos alicia a fazer.
Assim, e sem a mínima pretensão de esgotarmos
cada uma das vertentes da vivência humana em que é visível a acção do Poder,
voltemos à dignidade humana, do seu significado à prática de que todos nós
temos vindo a ser capazes ao longo da História da humanidade.
Dissemos que a
dignidade do ser humano é inviolável. Que é um valor, porque nada a pode
comprar. Que esse valor é fundacional para a construção de cada ser humano, na
sua plenitude física e espiritual, como um ser inteiro, livre e autónomo. Que é
essencial reconhecermos em nós próprios e no Outro, qualquer que ele seja, essa
idêntica, e recíproca, dignidade humana.
Mas se o Outro for
diferente, somos capazes desse reconhecimento total e de o assumir sem
quaisquer dúvidas? Quão diferente pode ser o Outro para nos sentirmos à-vontade
para lhe reconhecermos, por inteiro, a sua dignidade humana? Não esconderemos
um certo desconforto (chamemos-lhe assim) afirmando convictamente que a
tolerância é um valor de que não abdicamos, esquecendo que tolerar é um verbo
de acção que se conjuga sempre verticalmente e sempre de cima para baixo,
acompanhado de um “Se” onde se agrupam as condições (de diversíssima ordem) que
o Outro deve cumprir para merecer essa nossa tolerância?
De facto, em toda a
História da Humanidade, o Outro Diferente tem sido constante vítima de todas as
formas de segregação, de rejeição, de discriminação.
Dois exemplos podem
confirmar esta conclusão:
1.
A
Declaração Universal de Direitos Humanos foi ratificada pela maioria dos
Estados em 1948. No entanto, nem o reconhecimento generalizado da milenar luta
das Mulheres contra o domínio do homem conseguiu evitar que os Direitos das
Mulheres só fossem formalmente reconhecidos como Direitos Humanos em 1993, na
Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, em Viena: “Os direitos humanos
das mulheres e das raparigas são uma parte inalienável e indivisível dos
direitos humanos universais”.(10)
2.
Indo
para além de Hannah Arendt e a “banalização do mal”, Daniel Jonah Goldhagen
(11) caracteriza o Outro Diferente como aquele a quem não nos é fácil
reconhecer a sua “inviolável dignidade humana”:
a. Os “inimigos existenciais”, como
aqueles que podem contrariar, mesmo impedir, o nosso bem-estar presente e o seu
desenvolvimento para um futuro de melhores níveis de bem-estar, e que devem
“ser derrotados antes de nos derrotarem.” (12);
b. Os “sub-humanos”, como aqueles a quem
não reconhecemos quaisquer características humanas, pois são apenas “bárbaros
ou bestas ou animais… indignos de consideração moral.” (13):
c. Os “heréticos”, como aqueles que
defendem diferentes ideologias, laicas ou religiosas, divergindo
“voluntariamente do credo consagrado e procuram fazer-nos mal ou evitar a
salvação da humanidade.” (14);
d. Os “demónios”, como aqueles que são
“criaturas inumanas, deliberadamente malevolentes, uma incarnação secular
cristã do demónio ou dos seus lacaios.”(15)
Estes Outros tão
Diferentes suscitaram, por todo o século XX, e por todo o mundo, reacções de
rejeição da sua “intrínseca dignidade humana” que foram sustentáculo, provocado
e alimentado pelos Poderes instituídos (quaisquer que fossem as suas
ideologias, laicas ou religiosas), para a conquista, o exercício, a manutenção
e o alargamento do seu Poder, levando a sua acção ao extremo do massacre, do
genocídio, do assassínio em massa.
Estas acções
devastadoras, eliminacionistas, varreram todo o século, com as mortes a
ultrapassarem os 150 milhões, excluindo as verificadas nas I e II Guerras
Mundiais: o massacre dos Herero e dos Nama pelos alemães (já reconhecido pela
Alemanha), no sudoeste africano; dos Kikuyu no Quénia pelos britânicos; dos
Arménios pelos turcos; dos judeus, ciganos, polacos, pelos alemães; os
não-comunistas por Estaline, Mao, Pol Pot; os comunistas pelos filipinos, pelas
juntas militares do Brasil e da Argentina; os congolenses pelos belgas; os
timorenses pela Indonésia; os Maias na Guatemala; são alguns dos exemplos da
tragédia humana do século XX, nascida e exacerbada pelo não reconhecimento da dignidade
humana do Outro Diferente.
Hoje permanecemos
confrontados com o cumprimento do difícil dever de reconhecimento da Dignidade
humana de um Outro ser humano Diferente: os refugiados que, fugindo a um
presente macabro e a um futuro inexistente, já são demonizados em muitos
Estados da União Europeia.
Mas se esta abordagem
diz respeito ao primeiro valor fundacional da Comunidade a que pertencemos, o
da dignidade humana de cada um de nós, importa reflectirmos sobre o outro valor
igualmente crucial: o da vontade popular, da soberania, autonomia e
independência na escolha dos caminhos que queremos percorrer na Construção do
Futuro em que nos reconheçamos inteiros e livres.
Neste âmbito, os
artigos já citados da nossa Constituição não podiam ser mais claros: “a
soberania, una e indivisível reside no povo”, povo esse que tem o dever e o
direito não só de ter uma participação activa em todas as esferas da acção
política, mas também de ser informado, de acompanhar e de criticar as opções e omissões
que os políticos e os funcionários e agentes do Estado assumam no desempenho
das suas funções.
Quer isto dizer que se
a um “Estado de direito democrático” é delegada a representação da vontade
popular, e o exercício de um Poder dela resultante, tal não significa que:
Ø Os políticos, funcionários e agentes
do Estado, ao exercerem as suas funções “pelo povo”, se possam considerar, de
algum modo, como “substitutos do povo”;
Ø Os políticos, funcionários e agentes
do Estado, ao exercerem as suas funções “para o povo”, possam assumir-se, paternalisticamente,
como os únicos que detêm a capacidade e as competências para “tomar as melhores
decisões” para todos.
De facto, falta
exercer esse Poder “com o povo”. E vivendo nós num mundo incerto, instável,
inseguro, cada vez mais complexo, é urgente que a relação dialógica entre cada
um de nós, a comunidade a que pertencemos e que reconhecemos como nossa, e o
Estado que nos representa, seja uma relação de efectiva confiança e respeito
mútuo, em qualquer das suas áreas de actuação, por forma a que o Poder que a
este foi delegado seja considerado, respeitado e sentido como factor de coesão
nacional e de construção de um Futuro comum desejado por todos.
Uma das áreas onde o
Estado projecta, pela sua acção, a soberania e a vontade popular é a da Defesa
Nacional. Das várias vertentes que a compõem, analisemos apenas a que respeita
à Defesa Militar.
Vejamos o que nos diz
a Constituição da República Portuguesa:
Artigo 273º (Defesa nacional)
“1. É obrigação do Estado assegurar a defesa nacional.
2. A defesa nacional
tem por objectivo garantir, no respeito da ordem constitucional, das
instituições democráticas e das convenções internacionais, a independência
nacional, a integridade do território e a liberdade e segurança das populações
contra qualquer agressão ou ameaça externa.”
Artigo 275º (Forças Armadas)
“1. Às Forças Armadas incumbe a defesa nacional militar da
República.
2. …
3. As Forças Armadas
obedecem aos órgãos de soberania competentes, nos termos da Constituição e da
lei.
4. As Forças Armadas
estão ao serviço do povo português, são rigorosamente apartidárias e os seus
elementos não podem aproveitar-se da sua arma, do seu posto ou da sua função
para qualquer intervenção política.”
Artigo 276º (Defesa da Pátria, serviço militar e serviço
cívico)
“1. A defesa da Pátria é um direito e dever fundamental de
todos os portugueses.”
Estão presentes
nestes artigos da nossa Constituição os quatro conceitos que titulam este
texto: Dignidade Humana, Soberania, Estado e Poder.
E para os militares
deles deriva o seu Juramento de Bandeira, concretizado em cerimónia pública e
solene, e assumido individualmente perante o povo português:
“Juro,
como português e como militar, servir as Forças Armadas,
guardar e
fazer guardar a Constituição e as leis da República.
Juro,
defender a minha Pátria, e estar sempre pronto a lutar
pela sua
liberdade e independência,
mesmo
com sacrifício da própria vida.”
Este juramento contém,
de forma inquestionável, três exigentíssimas opções políticas e humanas:
-
o sacrifício da própria vida
-
o matar o Outro, um ser humano tido como inimigo
-
o subordinar esse Poder letal, definitivo, “aos órgãos de soberania competentes”,
isto é, subordinar o Poder militar ao Poder político.
É imperioso relevar que este juramento não é
assumido por seres que sofrem de uma patologia suicida para sacrificarem a
vida; nem de uma psicopatia assassina para matarem outro ser humano; nem de uma
anomalia masoquista para se subordinarem a um outro Poder.
Por outro lado, e
voltando à Constituição da República Portuguesa:
Artigo 7º (Relações Internacionais)
“Portugal
rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional,
do respeito dos direitos do homem, dos direitos dos povos, da igualdade entre
Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência
nos assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com todos os outros
povos para a emancipação e progresso da humanidade.”
Este artigo estende às
relações internacionais o nível de confiança que exigimos na dialógica
Indivíduo-Comunidade-Estado. Sem ela, também nas relações com outras
comunidades, com outros Estados, haverá lugar para um Poder exercido à revelia,
senão mesmo contra, a dignidade de cada ser humano e da soberania dos povos.
O mundo está inseguro,
instável, incerto, cada vez mais complexo e perigoso.
E profundamente contraditório. Vejamos:
Ø De acordo com o Stockholm International
Peace Research Institute, as dez multinacionais que em 2013 e 2014 mais vendas
de armamento realizaram atingiram, em cada um desses anos, mais de 200 mil
milhões de dólares. Sete dessas multinacionais são norte-americanas.
Ø O Estado Islâmico – o Islão político
que se serve de uma ideologia religiosa para conquistar, exercer, manter e
alargar o seu Poder – constitui uma das mais graves ameaças à paz no mundo.
Porém, tanto quanto se sabe, não possui infra-estruturas produtoras do
armamento que vem usando.
Ø Em Maio do corrente ano, um relatório
do Center for a New American Security (16), dirigido a quem for eleito para a
Presidência dos EUA, afirma que é essencial “estender o poder americano” por
todo o mundo, com um forte suporte no Poder militar para assegurar a defesa dos
seus interesses. Pontos estratégicos para este objectivo: Ásia, Médio Oriente e
Europa. Relevante ainda é o reconhecimento de que o Poder económico e político
alcançado pelos EUA se iniciou com a produção de armamento para os britânicos e
franceses na I Grande Guerra, continuou com a II Grande Guerra e foi reforçado
e institucionalizado com o acordo de Bretton Woods e com o Plano Marshall.
Ø Em Junho de 2015 a União Europeia
publicou o “Relatório dos 5 Presidentes” (Conselho Europeu, Comissão Europeia,
Parlamento Europeu, Eurogrupo e Banco Central Europeu) delineando as
orientações para “Completar a União Europeia Económica e Monetária” (17). Entre
outros objectivos:
a. Mais elevado grau de partilha de
soberania dos Estados-Membros. (O que significará, de facto, perda de soberania
dos Estados-Membros que não acompanham “a França porque é a França” e a
“Alemanha porque é a Alemanha”).
b. Reforço dos poderes do Eurogrupo
c. Criação de duas novas entidades
“independentes”: a Autoridade para a Competitividade e a Autoridade para a
Fiscalidade. Serão missões destas autoridades “acompanhar” (isto é, fiscalizar)
e “recomendar” (isto é, impor) os desenvolvimentos das respectivas áreas nos
diversos Estados-Membros.
Ø É veloz a evolução do Conhecimento,
da Ciência, da Tecnologia. No entanto, qualquer destas áreas do Saber necessita
de financiamento para a realização dos seus programas. Sendo grande parte desse
financiamento privado, a competição para o obter é grande, o que conduz à
fragmentação dos Saberes e à sua subjugação ao lucro.
Tanto mais quanto os próprios
“cientistas” financeiros fizeram as suas próprias descobertas:
a.
As operações aritméticas não são quatro, são
cinco: somar, subtrair, dividir, multiplicar e… sumir!
b.
A nível da cartografia, substituíram os mapas
tradicionais pela “cartografia exceliana”: uma simples “folha de excel”, dotada
de “coordenadas flexíveis” que respondem às circunstâncias do momento com
grande rapidez e pouco risco.
c.
No âmbito das navegações, descobriram os
caminhos informáticos para os paraísos.
Ø Vários artigos do número de
Janeiro-Fevereiro de 2015 da Military Review destacaram três questões
essenciais com que os militares norte-americanos têm de se confrontar, debater,
interiorizar e praticar:
a. A aprendizagem e a prática do pensamento
crítico, como uma resposta essencial à extrema complexidade das situações que
terão de enfrentar nas missões que lhes forem atribuídas.
b. As questões éticas que terão de
assumir.
c. O confronto violento que as mais
avançadas tecnologias – os drones – estão a suscitar no que concerne à honra de
um militar na guerra.
Perante estas
condições e esta exigência de debate sério e profundo - que não se reduza apenas à superfície das
circuntâncias – onde estão os militares portugueses, para além do que encontramos
na nossa Constituição, no Estatuto de Roma (reconhecido no Artigo 7º - nº 7 da
Constituição), na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia?
Pois, estão na Lei
Orgânica do Ministério da Defesa Nacional de 2014, mas não como pessoas: são
meros “recursos da defesa nacional”.
E, claro, também estão
no Estatuto dos Militares das Forças Armadas, mas com a extrema preocupação de
cumprirem o “dever de isenção política”.
Estamos, assim, em
estado de contradição permanente, a que urge pôr cobro:
Ø Como pode um “recurso” ter pensamento
crítico e fazer uso dele?
Ø Como pode um militar “cumpridor e
obediente” do EMFAR fazer aquelas exigentíssimas opções políticas, se tem de
ser “politicamente isento”?
Ø Será
que a dignidade humana de cada militar foi “trocada por outra coisa qualquer”,
“coisificando-os” em nome de um “preço qualquer”, um qualquer “custo-benefício”
calculado por um Poder económico e financeiro que, de condicionante das opções
humanas e políticas, se transformou em determinante dessas opções, usurpando o
Poder político e pondo-o ao seu serviço?
Ø Se
assim é, perante quem se subordina o Poder militar?
Ø Se
assim é, perante quem os militares juram o sacrifício da própria vida?
Será possível admitir um elevado grau de ingenuidade nesta
reflexão. No fundo, todos estaremos (mais ou menos) conscientes de que a práxis
política dos “Estados de direito democrático” segue, há décadas (pelo menos) o
que Clement Attlee afirmou em 1957:
“A
democracia significa um governo pela discussão, mas só é eficaz se se conseguir
impedir que as pessoas falem.”
O problema é que a
guerra não é uma questão apenas militar, ou apenas política: é uma questão
humana que diz respeito a todos os seres humanos.
As funções soberanas
do Estado começam, e acabam, em cada um de nós, como actores protagonistas de
um Presente partilhado solidariamente e da construção do Futuro comum que
ansiamos.
Sem assumirmos e
praticarmos esse protagonismo, estaremos a abdicar da nossa “inviolável
dignidade humana”, da nossa “inviolável soberania”, aceitando que um Poder,
interno ou externo as “substitua por outra coisa qualquer”, dependendo esta
“coisa qualquer” do preço que estiver a ser “negociado”.
Que escolha fazemos?
Referências:
(1) Citado no “Documento de Trabalho
26/CNECV/99 – Reflexão Ética sobre a Dignidade Humana”, 5Jan1999, co Conselho
Nacional de Ética para as Ciências da Vida.
(2) Idem.
(3) Citado por André Gustavo Corrêa
Andrade in “O Princípio Fundamental da Dignidade Humana e sua Concretização
Jurídica”.
(4) Lexicoteca.
(5) A. Almeida de Moura, “Estado e Forças
Armadas: vectores humanos do poder”, in “Educar, Defender, Julgar”.
(6) Idem.
(7) Edgar Morin, “O Método V. A
Humanidade da Humanidade. A Identidade Humana”.
(8) A. Almeida Moura, obra citada.
(9) Idem.
(10)
CNECV,
obra citada.
(11)
Daniel
Jonah Goldhagen, “A Pior das Guerras. Genocídio, Extermínio e Violência no
Século XX”.
(12)
Idem.
(13)
Ibidem.
(14)
Ibidem.
(15)
Ibidem.
(16)
“Extending American Power. Strategies
to Expand U.S. Engagement in a Competitive World Order”, Center for a New
American Security.
(17)
“Completing Europe’s Economic and
Monetary Union”.
(Texto apresentado na Conferência "Funções Soberanas do Estado. Em nome do povo, respeito pela Constituição", na Universidade Católica, em 20 de Outubro de 2016. A Conferência foi organizada por 15 estruturas associativas e sindicais, tendo eu participado com este texto, em representação da Associação Nacional de Sargentos, da Associação de Oficiais das Forças Armadas, e da Associação de Praças.)
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