quinta-feira, 5 de março de 2015

Os Militares e a Política

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O Direito à Vida é uma exigência de cada um de nós. Dele não abdicamos, e nele incluímos o nosso corpo de Afectos. E, como membros de uma Comunidade que reconhecemos como nossa, onde nos revemos livres e inteiros, compartilhamo-lo com o Outro, no que podemos designar como construção colectiva do Bem Comum, preservando, defendendo e garantindo esse Direito.

É responsabilidade de todos darmos o nosso contributo para o defendermos, preservarmos e garantirmos. Esta responsabilidade é assumida, de um modo especial, pelos militares.

Porém, ao abordarmos esta “especial responsabilidade” devemos ter presente que: 1) Se Clémenceau, Presidente do Conselho francês a seguir à I Guerra Mundial disse que a guerra era uma coisa demasiado séria para ser deixada apenas nas mãos dos generais; 2) Se o Movimento das Forças Armadas disse, em 25 de Abril de 1974, que a guerra era uma questão demasiado séria para ser deixada apenas nas mãos dos políticos; 3) Ambas certas, ambas redutoras, estas expressões esquecem o fundamental – a guerra é um assunto tão sério que nos diz respeito a todos, incontornavelmente, enquanto membros de uma Comunidade.

Se aos militares a Comunidade reconhece a legitimidade para o uso da força, é imperioso que a sua prática, desde a sua preparação até à acção concreta, seja definida por leis e normas claras, precisas e estáveis, que permitam a existência de fortes laços de confiança, e de coesão, quer dentro do corpo de militares, as Forças Armadas, quer entre estas e a Comunidade.

Têm sido múltiplas, e dispersas, as leis – e suas alterações – produzidas para definir o enquadramento legal das Forças Armadas, dos militares, das suas acções. Vejamos dois casos, que reputamos de elevada importância.

Na Lei Orgânica do Ministério da Defesa Nacional, recentemente promulgada, especifica-se a criação da Direcção-Geral de Recursos Humanos da Defesa Nacional, que “tem por missão conceber, desenvolver, coordenar e executar as políticas de recursos humanos, armamento, equipamentos, património e infra-estruturas necessários à defesa nacional”. Ficámos a saber que os militares – Seres Humanos! – estão “legalmente” equiparados a armas, munições, máquinas, bens, no que respeita a todo o seu “ciclo de vida logístico”!

Podemos constatar que este normativo, que resulta da extinção da Direcção-Geral de Pessoal e Recrutamento Militar, vai em sentido oposto à evolução das organizações das empresas privadas, que faz do efectivo reconhecimento de quem nelas trabalha como Pessoas, como Seres Humanos, um dos factores mais relevantes que sustentam significativos aumentos da sua produtividade, competitividade, criatividade, capacidade de inovação.

Também o Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR) se encontra em processo de revisão profunda, conforme Projecto de Proposta já apresentado. Nele podemos ler: “Artigo 12º - Deveres Especiais, nº 1 – São deveres especiais do militar: … i) O dever de isenção política;”. (Relevemos que o EMFAR ainda em vigor inscreve o “dever de isenção partidária”, algo substancialmente diferente.)

Uma abordagem imediata deste artigo leva-nos a constatar que quando assumimos uma prática de “isenção política” estamos a fazer uma opção … política!

Ora, acontece que, de acordo com a Lei nº 11/89, de 1 de Junho, Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar, Artigo 2º, “A condição militar caracteriza-se: … b) Pela permanente disponibilidade para lutar em defesa da Pátria, se necessário com o sacrifício da própria vida;”.

Também o actual EMFAR (e que o Projecto de Proposta não altera) contém a fórmula de juramento (individual, sublinhemos) do militar:

“Juro, como português(a) e como militar, guardar e fazer guardar a Constituição e as leis da República, servir as Forças Armadas e cumprir os deveres militares. Juro defender a minha Pátria e estar sempre pronto(a) a lutar pela sua liberdade e independência, mesmo com o sacrifício da própria vida”.

Nenhum militar faz este juramento (reiteremos, um juramento individual) por sofrer de alguma patologia suicida.

E se a luta para “defender a Pátria, a sua liberdade e independência” pode impôr “o sacrifício da própria vida”, pode, ao mesmo tempo causar a morte de quem tenha atentado contra a Pátria. Mas tal não significa que o militar seja, por isso, um psicopata assassino, nem, muito menos, um fanático terrorista para quem todos os outros são inimigos que merecem morrer.

Não constituindo nenhuma destas hipóteses a razão para que o militar jure, perante a Bandeira Nacional – o que significa jurar perante toda a Comunidade! – “o sacrifício da própria vida”, esta atitude só poderá entender-se como uma exigentíssima opção política! E tirar dessa atitude todas as consequências, e responsabilidades, a assumir pelo militar, pelo poder político, pela Comunidade.

Aquele dever é, assim, impossível de cumprir, por contradição insanável com o Juramento militar.

Mas podemos (devemos) tentar ir um pouco mais longe, analisando simultaneamente aquela Lei Orgânica e este Projecto de Proposta, nos artigos e alíneas referidos. Em documentos de tamanha relevância, não apenas para os que por eles são directamente visados, mas sobretudo para todos nós – pois da nossa defesa como Comunidade se trata! – seria um erro trágico que entre eles houvesse discordâncias ou contradições.

É, portanto, evidente que estes documentos se entrelaçam num todo coerente, visando objectivos claros e precisos. Mas serão tais objectivos também coerentes e concordantes com os anseios e expectativas da Comunidade? Vejamos:

- Um ser “isento politicamente” é … um não-ser;

- Um “recurso humano” equiparado a um “recurso de armamento, ou de equipamento” é … um instrumento.

Ou seja, definido como um “não-ser” e como um “instrumento”, ao militar nada mais restará senão assumir a sua condição de … “coisa”. O alfa e o ómega dos seus deveres é estar sempre pronto e disponível para … fazerem dele o que “superiormente” for decidido.

Claro que tal situação determinaria a desresponsabilização do militar de qualquer acto por si cometido, enquanto militar, pois a responsabilidade caberia, por inteiro, a quem detivesse o poder dessa decisão, nomeadamente o poder político. O que contraria o que impõe o Estatuto de Roma (que Portugal ratificou): a responsabilidade de cada militar pelos seus actos, e consequências deles; a responsabilidade acrescida dos superiores hierárquicos, incluindo e começando pelos detentores do poder político.

Porém, se atentarmos na prática dos sucessivos governos, particularmente neste início de século, e sobretudo o actual, assumir responsabilidades é algo que não faz parte dos seus propósitos, da sua maneira de estar, no seu modo de fazer política.

Como exemplo dessa auto-desresponsabilização temos o “colossal desvio” nas contas públicas que o actual governo afirmou, na Assembleia da República, ter identificado, mas que não teve a consequência que se impunha, uma auditoria séria e independente àquelas contas, nem por iniciativa do governo, nem por deliberação da Assembleia da República, enquanto órgão que tem a responsabilidade de aprovar os Orçamentos de Estado (o que tem tudo a ver com contas públicas).

Como suporte ideológico deste modo de fazer política, de exercer o Poder Político, está o “movimento NHA (Não Há Alternativa)”, importado dos consulados de Margaret Tatcher e de Ronald Reagan (TINA – There Is No Alternative) que, subalternizando os Valores e os Princípios que cimentam a coesão de uma Comunidade – porque neles todos os seus membros se revêem, e reconhecem como seus, individual e colectivamente -, ou mesmo abandonando-os, impõe as circunstâncias do momento como único factor de decisão política.

É, no entanto, imperioso constatar que essas circunstâncias reflectem interesses, que são múltiplos, de diversa natureza, muitas vezes conflituantes entre si, e demonstradamente alheios ao interesse colectivo da Comunidade, por serem exclusivamente privados.

Esta multiplicidade conflituante de interesses privados conduz os governos a “andar a reboque” das circunstâncias, assumindo-as como determinantes da sua acção política. E com a marginalização, o abandono, dos Valores e dos Princípios que deveriam ser o suporte incontornável das opções políticas a fazer, essa acção política fica reduzida à obediência aos interesses que integram a circunstância mais pesada, numa valoração que deriva da força relativa que os diversos actores protagonistas de cada circunstância tenham entre si para afirmarem que a sua “não-alternativa” é a que deve prevalecer e ser “escolhida”.

Nada disto tem a ver com as necessidades, as expectativas, os anseios, das Comunidades. Mas é este o caminho que tem vindo a ser percorrido pelos sucessivos governos, em Portugal como na União Europeia (UE). A luta, difícil e dura, que neste momento opõe a Grécia aos restantes membros da UE é disso prova.

Porém, esta generalizada opção política pela via do “movimento NHA” conduziu a um afastamento, iniludível, entre as Comunidades e os seus governos. Um afastamento visivelmente crescente, como uma recente sondagem da empresa Gallup constata: a percentagem dos que, em cada Comunidade, estão disponíveis para lutar por ela – lutar pela sua Pátria! – é extremamente baixa – Portugal 28%; Alemanha 18%; Bélgica, Holanda, Itália com valores ainda mais baixos!

Reduzir o militar a um instrumento de que o governo se serve para defender, não os Valores e Princípios em que é imperioso que assente a construção do Bem Comum e do Futuro da Pátria livre e independente, mas apenas interesses privados (e tantas vezes obscuros) definidos por circunstâncias aleatórias e imprevisíveis, é negar a exigente opção política, individual, contida no juramento que cada militar faz: servir a Pátria “mesmo com sacrifício da própria vida”.

Claro que no “dependismo” ideológico que a submissão incondicional às circunstâncias do momento traduz, poderá argumentar-se que a vida de cada um é “um bem transaccionável, com cotação no mercado bolsista”.

Mas nesse caso não estaríamos a falar de um militar, pois não?