segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Dignidade Humana, Soberania, Estado e Poder Uma Reflexão sobre as suas Interacções

     Dignidade Humana, Soberania, Estado e Poder
       Uma Reflexão sobre as suas Interacções

  A Constituição da República Portuguesa afirma, no seu Artigo 1º (República Portuguesa)
   “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da
    pessoa humana e na vontade popular empenhada na construção
    de uma sociedade livre, justa e solidária.”
  Dissecando-o, podemos constatar que contém uma definição – “Portugal é uma República soberana” -, e um propósito – “a construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Para ambos explicita dois inequívocos e determinantes conceitos que constituem as suas bases de sustentação – a “dignidade da pessoa humana” e a “vontade popular”.
  Sendo a Constituição o vértice superior da estrutura orgânica e da orientação prática – social, política, cultural, jurídica, económica – da comunidade em que nos reconhecemos e a que chamamos nossa, importa entendermos os significados daqueles conceitos.
  Assim, e quanto à “dignidade da pessoa humana”, poderemos acompanhar Immanuel Kant (1): “No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço pode pôr-se em vez dela qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade”.
  E seguindo ainda Kant (2): “Age de tal modo que trates a humanidade tanto na tua pessoa como na do outro sempre e ao mesmo tempo como um fim e nunca simplesmente como um meio”.
  O fim em si mesmo que cada ser humano é exige o respeito por si próprio e, simultaneamente, o reconhecimento do outro, de qualquer outro ser humano, como também um fim em si mesmo.
  Desta forma, reconhecimento e respeito recíprocos assumem duas das vertentes imprescindíveis do diálogo de cada ser humano com o Outro: a dignidade humana é um valor intrínseco ao ser humano e determinante para a co-existência dos seres humanos.
  Isto mesmo é expresso no Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948:
    “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;”
 bem como no seu Artigo 1º
     “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em
  direitos.”
  Por outro lado, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 2000, no seu Preâmbulo, não foge deste rumo:
     “Consciente do seu património espiritual e moral, a União baseia-se nos valores individuais e universais da dignidade do ser humano, da liberdade, da igualdade e da solidariedade; assenta nos princípios da democracia e do Estado de Direito. Ao instituir a cidadania da União e ao criar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, coloca o ser humano no cerne da sua acção.”
para, no seu Capítulo I – DIGNIDADE – Artigo 1º, afirmar
    “A dignidade do ser humano é inviolável. Deve ser respeitada e protegida”.
  Da dignidade humana diz I. Wolfgang Sarlet (3) que é “a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer acto de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover a sua participação activa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.
  Quer isto dizer que a comunidade é constituída por um conjunto de seres humanos que reconhecem e respeitam, em si próprios e em cada um dos outros, uma “qualidade intrínseca e distintiva”, que designamos por dignidade humana. Ou seja, uma comunidade não é um conjunto de seres uniformes, uma soma de seres indiferenciados, mas antes uma multidiversidade de Eus, distintos nas suas capacidades de autonomia de decisão em relação à sua própria vida, mas participantes activos no viver comum, também ele pleno de decisões, sendo estas resultantes do diálogo sustentado no valor que une esses diversos Eus, a dignidade humana.
  É desta participação activa no viver comum, deste diálogo permanente, intenso, tantas vezes tenso, contraditório, mas sempre inteiro e livre, que resulta a vontade popular. Vontade popular que toma forma a partir de um Passado em que todos os membros da comunidade se revêem e reconhecem como seu; assumem um Presente partilhado e solidário; e se propõem um Futuro comum, construído por todos de acordo com as suas capacidades, numa reciprocidade e complementaridade de direitos e deveres, de modo a se apresentarem perante todas as outras comunidades conscientes da multidiversidade de Eus colectivos, também eles autónomos na sua capacidade de decisão, mas participantes activos no viver comum colectivo.
  A soberania será, pois, a expressão de uma dignidade humana colectiva, não como uma uniformizante soma, mas como uma pluralidade de expressões dessa mesma dignidade humana, que se reconhecem e respeitam mesmo se constituem uma pluralidade de diferentes.
  Voltando à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, podemos constatar que no seu Preâmbulo está vertido o reconhecimento dessa inviolável dignidade humana colectiva que designámos por soberania:
    “A União contribui para a preservação e o desenvolvimento destes valores comuns [citação anterior], no respeito pela diversidade das culturas e das tradições dos povos da Europa, bem como da identidade nacional dos Estados-Membros e da organização dos seus poderes públicos aos níveis nacional, regional e local;”.
  De igual modo a Constituição expressa, de forma clara, no seu Artigo 2º (Estado de direito democrático), este conjunto de valores fundacionais:
    “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democrática, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”.
e também no nº 1 do seu Artigo 3º (Soberania e legalidade):
     “A soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as normas previstas na Constituição”.
  Estes dois artigos remetem-nos para o terceiro vértice da dialógica em cuja práxis sustentamos o desenvolvimento pleno da nossa dignidade individual, como qualquer ser humano, e, ainda, da nossa dignidade colectiva, como qualquer comunidade de seres humanos – o Estado, isto é, “uma sociedade territorial juridicamente organizada, dotada de soberania, objectivada na realização do bem comum”.(4)
  Nesta relação dialógica Indivíduo – Comunidade – Estado, “O Indivíduo constrói-se construindo uma Comunidade que lhe sustente um sentimento de pertença. Por sua vez a Comunidade constrói-se construindo Indivíduos solidários entre si, dentro de padrões comportamentais reconhecidos e praticados por todos, dando-lhes uma perspectiva de Futuro comum. Por outro lado, ambos constroem uma entidade, o Estado, colocada ao seu serviço, para a sua defesa individual e colectiva, para o desenvolvimento do seu bem-estar, também individual e colectivo, mas à qual é concedido o poder de se fazer obedecer, de novo individual e colectivamente, no caminho a percorrer para a edificação desse bem comum por todos desejado”. (5)
  Importa relevar que a concessão ao Estado do “poder de se fazer obedecer” não lhe permite usurpar para si “a soberania que reside no povo”, na Comunidade. Nem o “aprofundamento da democracia participativa” se esgota na construção dessa entidade: “…é imperioso que os membros da comunidade, indivíduos e instituições, se revejam nessa identidade do Estado assim constituído. A paz social interna, e o reconhecimento externo, não fazem da comunidade um conjunto de actores secundários e passivos, cuja função fique reduzida a permanecerem “habituados a obedecer”, sacralizando o Estado como um super-ego individual e colectivo”. (6)
  De facto, também nesta área a nossa Constituição não deixa margem para dúvidas:
     Artigo 22º  (Responsabilidades das entidades públicas)
    “O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”.
     Artigo 48º (Participação na vida pública)
     “1. Todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos públicos do país, directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos.
       2. Todos os cidadãos têm o direito de ser esclarecidos objectivamente sobre actos do Estado e demais entidades públicas e de ser informado pelo Governo e outras entidades acerca da gestão dos assuntos públicos”.
        Artigo 108º (Titularidade e exercício do poder)
        “O poder político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição”.
          Artigo 109º (Participação política dos cidadãos)
          “ A participação directa e activa de homens e mulheres na vida política constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático, devendo a lei promover a igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos e a não-discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos”.
            Artigo 117º nº1 (Estatuto dos titulares de cargos políticos)
            “Os titulares dos cargos políticos respondem política, civil e criminalmente pelas acções e omissões que pratiquem no exercício das suas funções”.
  Estes artigos da Constituição demonstram, ainda, que o Estado não é uma entidade abstracta e sacralizada (7): “…se é verdade que ela se consubstancia num aparelho organizado, movimentado, orientado, não podemos esquecer que a condução destas acções é feita por pessoas, isto é, por alguns membros da comunidade a quem os restantes de algum modo confiaram a gestão de parte significativa da sua vida e da sua perspectiva de futuro, individual e colectivo”. (8)
  “Plurais e contraditórios como são todos os seres humanos, as suas construções humanas – neste caso Comunidade e Estado – são-no também. Daí que esta relação dialógica Indivíduo – Comunidade – Estado seja extremamente complexa, contraditória, problemática. E tanto mais quanto o factor que determina as acções de cada um dos vértices nessa relação é o Poder”. (9)
  Não é escopo desta reflexão abordar a questão do Poder nas suas múltiplas formas e manifestações nas áreas em que os seres humanos são actores protagonistas – política, cultura, economia, ciência, justiça, etc. Mas é necessário partirmos do que acima ficou expresso para uma, também ela parcelar, abordagem da componente militar da Defesa Nacional, tendo presente algumas daquelas manifestações do Poder que relevamos como essenciais para irmos mais fundo do que a superfície do nosso presente nos alicia a fazer.
  


  Assim, e sem a mínima pretensão de esgotarmos cada uma das vertentes da vivência humana em que é visível a acção do Poder, voltemos à dignidade humana, do seu significado à prática de que todos nós temos vindo a ser capazes ao longo da História da humanidade.
 Dissemos que a dignidade do ser humano é inviolável. Que é um valor, porque nada a pode comprar. Que esse valor é fundacional para a construção de cada ser humano, na sua plenitude física e espiritual, como um ser inteiro, livre e autónomo. Que é essencial reconhecermos em nós próprios e no Outro, qualquer que ele seja, essa idêntica, e recíproca, dignidade humana.
 Mas se o Outro for diferente, somos capazes desse reconhecimento total e de o assumir sem quaisquer dúvidas? Quão diferente pode ser o Outro para nos sentirmos à-vontade para lhe reconhecermos, por inteiro, a sua dignidade humana? Não esconderemos um certo desconforto (chamemos-lhe assim) afirmando convictamente que a tolerância é um valor de que não abdicamos, esquecendo que tolerar é um verbo de acção que se conjuga sempre verticalmente e sempre de cima para baixo, acompanhado de um “Se” onde se agrupam as condições (de diversíssima ordem) que o Outro deve cumprir para merecer essa nossa tolerância?
 De facto, em toda a História da Humanidade, o Outro Diferente tem sido constante vítima de todas as formas de segregação, de rejeição, de discriminação.
 Dois exemplos podem confirmar esta conclusão:
1.     A Declaração Universal de Direitos Humanos foi ratificada pela maioria dos Estados em 1948. No entanto, nem o reconhecimento generalizado da milenar luta das Mulheres contra o domínio do homem conseguiu evitar que os Direitos das Mulheres só fossem formalmente reconhecidos como Direitos Humanos em 1993, na Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, em Viena: “Os direitos humanos das mulheres e das raparigas são uma parte inalienável e indivisível dos direitos humanos universais”.(10)
2.     Indo para além de Hannah Arendt e a “banalização do mal”, Daniel Jonah Goldhagen (11) caracteriza o Outro Diferente como aquele a quem não nos é fácil reconhecer a sua “inviolável dignidade humana”:
a.     Os “inimigos existenciais”, como aqueles que podem contrariar, mesmo impedir, o nosso bem-estar presente e o seu desenvolvimento para um futuro de melhores níveis de bem-estar, e que devem “ser derrotados antes de nos derrotarem.” (12);
b.     Os “sub-humanos”, como aqueles a quem não reconhecemos quaisquer características humanas, pois são apenas “bárbaros ou bestas ou animais… indignos de consideração moral.” (13):
c.      Os “heréticos”, como aqueles que defendem diferentes ideologias, laicas ou religiosas, divergindo “voluntariamente do credo consagrado e procuram fazer-nos mal ou evitar a salvação da humanidade.” (14);
d.     Os “demónios”, como aqueles que são “criaturas inumanas, deliberadamente malevolentes, uma incarnação secular cristã do demónio ou dos seus lacaios.”(15)
 Estes Outros tão Diferentes suscitaram, por todo o século XX, e por todo o mundo, reacções de rejeição da sua “intrínseca dignidade humana” que foram sustentáculo, provocado e alimentado pelos Poderes instituídos (quaisquer que fossem as suas ideologias, laicas ou religiosas), para a conquista, o exercício, a manutenção e o alargamento do seu Poder, levando a sua acção ao extremo do massacre, do genocídio, do assassínio em massa.
 Estas acções devastadoras, eliminacionistas, varreram todo o século, com as mortes a ultrapassarem os 150 milhões, excluindo as verificadas nas I e II Guerras Mundiais: o massacre dos Herero e dos Nama pelos alemães (já reconhecido pela Alemanha), no sudoeste africano; dos Kikuyu no Quénia pelos britânicos; dos Arménios pelos turcos; dos judeus, ciganos, polacos, pelos alemães; os não-comunistas por Estaline, Mao, Pol Pot; os comunistas pelos filipinos, pelas juntas militares do Brasil e da Argentina; os congolenses pelos belgas; os timorenses pela Indonésia; os Maias na Guatemala; são alguns dos exemplos da tragédia humana do século XX, nascida e exacerbada pelo não reconhecimento da dignidade humana do Outro Diferente.
 Hoje permanecemos confrontados com o cumprimento do difícil dever de reconhecimento da Dignidade humana de um Outro ser humano Diferente: os refugiados que, fugindo a um presente macabro e a um futuro inexistente, já são demonizados em muitos Estados da União Europeia.
 Mas se esta abordagem diz respeito ao primeiro valor fundacional da Comunidade a que pertencemos, o da dignidade humana de cada um de nós, importa reflectirmos sobre o outro valor igualmente crucial: o da vontade popular, da soberania, autonomia e independência na escolha dos caminhos que queremos percorrer na Construção do Futuro em que nos reconheçamos inteiros e livres.
 Neste âmbito, os artigos já citados da nossa Constituição não podiam ser mais claros: “a soberania, una e indivisível reside no povo”, povo esse que tem o dever e o direito não só de ter uma participação activa em todas as esferas da acção política, mas também de ser informado, de acompanhar e de criticar as opções e omissões que os políticos e os funcionários e agentes do Estado assumam no desempenho das suas funções.
 Quer isto dizer que se a um “Estado de direito democrático” é delegada a representação da vontade popular, e o exercício de um Poder dela resultante, tal não significa que:
Ø Os políticos, funcionários e agentes do Estado, ao exercerem as suas funções “pelo povo”, se possam considerar, de algum modo, como “substitutos do povo”;
Ø Os políticos, funcionários e agentes do Estado, ao exercerem as suas funções “para o povo”, possam assumir-se, paternalisticamente, como os únicos que detêm a capacidade e as competências para “tomar as melhores decisões” para todos.
 De facto, falta exercer esse Poder “com o povo”. E vivendo nós num mundo incerto, instável, inseguro, cada vez mais complexo, é urgente que a relação dialógica entre cada um de nós, a comunidade a que pertencemos e que reconhecemos como nossa, e o Estado que nos representa, seja uma relação de efectiva confiança e respeito mútuo, em qualquer das suas áreas de actuação, por forma a que o Poder que a este foi delegado seja considerado, respeitado e sentido como factor de coesão nacional e de construção de um Futuro comum desejado por todos.
 Uma das áreas onde o Estado projecta, pela sua acção, a soberania e a vontade popular é a da Defesa Nacional. Das várias vertentes que a compõem, analisemos apenas a que respeita à Defesa Militar.
 Vejamos o que nos diz a Constituição da República Portuguesa:
Artigo 273º (Defesa nacional)
“1. É obrigação do Estado assegurar a defesa nacional.
  2. A defesa nacional tem por objectivo garantir, no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e das convenções internacionais, a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externa.”
Artigo 275º (Forças Armadas)
“1. Às Forças Armadas incumbe a defesa nacional militar da República.
  2. …
  3. As Forças Armadas obedecem aos órgãos de soberania competentes, nos termos da Constituição e da lei.
  4. As Forças Armadas estão ao serviço do povo português, são rigorosamente apartidárias e os seus elementos não podem aproveitar-se da sua arma, do seu posto ou da sua função para qualquer intervenção política.”
Artigo 276º (Defesa da Pátria, serviço militar e serviço cívico)
“1. A defesa da Pátria é um direito e dever fundamental de todos os portugueses.”
  Estão presentes nestes artigos da nossa Constituição os quatro conceitos que titulam este texto: Dignidade Humana, Soberania, Estado e Poder.
  E para os militares deles deriva o seu Juramento de Bandeira, concretizado em cerimónia pública e solene, e assumido individualmente perante o povo português:
             “Juro, como português e como militar, servir as Forças Armadas,
              guardar e fazer guardar a Constituição e as leis da República.
               Juro, defender a minha Pátria, e estar sempre pronto a lutar
               pela sua liberdade e independência,
               mesmo com sacrifício da própria vida.”
             
 Este juramento contém, de forma inquestionável, três exigentíssimas opções políticas e humanas:
                        - o sacrifício da própria vida
                        - o matar o Outro, um ser humano tido como inimigo
                        - o subordinar esse Poder letal, definitivo, “aos órgãos de soberania competentes”, isto é, subordinar o Poder militar ao Poder político.
  É imperioso relevar que este juramento não é assumido por seres que sofrem de uma patologia suicida para sacrificarem a vida; nem de uma psicopatia assassina para matarem outro ser humano; nem de uma anomalia masoquista para se subordinarem a um outro Poder.
 Por outro lado, e voltando à Constituição da República Portuguesa:
Artigo 7º (Relações Internacionais)
            “Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do respeito dos direitos do homem, dos direitos dos povos, da igualdade entre Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com todos os outros povos para a emancipação e progresso da humanidade.”
 Este artigo estende às relações internacionais o nível de confiança que exigimos na dialógica Indivíduo-Comunidade-Estado. Sem ela, também nas relações com outras comunidades, com outros Estados, haverá lugar para um Poder exercido à revelia, senão mesmo contra, a dignidade de cada ser humano e da soberania dos povos.
 O mundo está inseguro, instável, incerto, cada vez mais complexo e perigoso.
E profundamente contraditório. Vejamos:
Ø De acordo com o Stockholm International Peace Research Institute, as dez multinacionais que em 2013 e 2014 mais vendas de armamento realizaram atingiram, em cada um desses anos, mais de 200 mil milhões de dólares. Sete dessas multinacionais são norte-americanas.
Ø O Estado Islâmico – o Islão político que se serve de uma ideologia religiosa para conquistar, exercer, manter e alargar o seu Poder – constitui uma das mais graves ameaças à paz no mundo. Porém, tanto quanto se sabe, não possui infra-estruturas produtoras do armamento que vem usando.
Ø Em Maio do corrente ano, um relatório do Center for a New American Security (16), dirigido a quem for eleito para a Presidência dos EUA, afirma que é essencial “estender o poder americano” por todo o mundo, com um forte suporte no Poder militar para assegurar a defesa dos seus interesses. Pontos estratégicos para este objectivo: Ásia, Médio Oriente e Europa. Relevante ainda é o reconhecimento de que o Poder económico e político alcançado pelos EUA se iniciou com a produção de armamento para os britânicos e franceses na I Grande Guerra, continuou com a II Grande Guerra e foi reforçado e institucionalizado com o acordo de Bretton Woods e com o Plano Marshall.
Ø Em Junho de 2015 a União Europeia publicou o “Relatório dos 5 Presidentes” (Conselho Europeu, Comissão Europeia, Parlamento Europeu, Eurogrupo e Banco Central Europeu) delineando as orientações para “Completar a União Europeia Económica e Monetária” (17). Entre outros objectivos:
a.     Mais elevado grau de partilha de soberania dos Estados-Membros. (O que significará, de facto, perda de soberania dos Estados-Membros que não acompanham “a França porque é a França” e a “Alemanha porque é a Alemanha”).
b.     Reforço dos poderes do Eurogrupo
c.      Criação de duas novas entidades “independentes”: a Autoridade para a Competitividade e a Autoridade para a Fiscalidade. Serão missões destas autoridades “acompanhar” (isto é, fiscalizar) e “recomendar” (isto é, impor) os desenvolvimentos das respectivas áreas nos diversos Estados-Membros.
Ø É veloz a evolução do Conhecimento, da Ciência, da Tecnologia. No entanto, qualquer destas áreas do Saber necessita de financiamento para a realização dos seus programas. Sendo grande parte desse financiamento privado, a competição para o obter é grande, o que conduz à fragmentação dos Saberes e à sua subjugação ao lucro.
 Tanto mais quanto os próprios “cientistas” financeiros fizeram as suas próprias descobertas:
a.     As operações aritméticas não são quatro, são cinco: somar, subtrair, dividir, multiplicar e… sumir!
b.     A nível da cartografia, substituíram os mapas tradicionais pela “cartografia exceliana”: uma simples “folha de excel”, dotada de “coordenadas flexíveis” que respondem às circunstâncias do momento com grande rapidez e pouco risco.
c.      No âmbito das navegações, descobriram os caminhos informáticos para os paraísos.
Ø Vários artigos do número de Janeiro-Fevereiro de 2015 da Military Review destacaram três questões essenciais com que os militares norte-americanos têm de se confrontar, debater, interiorizar e praticar:
a.     A aprendizagem e a prática do pensamento crítico, como uma resposta essencial à extrema complexidade das situações que terão de enfrentar nas missões que lhes forem atribuídas.
b.     As questões éticas que terão de assumir.
c.      O confronto violento que as mais avançadas tecnologias – os drones – estão a suscitar no que concerne à honra de um militar na guerra.
 Perante estas condições e esta exigência de debate sério e profundo -  que não se reduza apenas à superfície das circuntâncias – onde estão os militares portugueses, para além do que encontramos na nossa Constituição, no Estatuto de Roma (reconhecido no Artigo 7º - nº 7 da Constituição), na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?
 Pois, estão na Lei Orgânica do Ministério da Defesa Nacional de 2014, mas não como pessoas: são meros “recursos da defesa nacional”.
 E, claro, também estão no Estatuto dos Militares das Forças Armadas, mas com a extrema preocupação de cumprirem o “dever de isenção política”.
 Estamos, assim, em estado de contradição permanente, a que urge pôr cobro:
Ø Como pode um “recurso” ter pensamento crítico e fazer uso dele?
Ø Como pode um militar “cumpridor e obediente” do EMFAR fazer aquelas exigentíssimas opções políticas, se tem de ser “politicamente isento”?
Ø Será que a dignidade humana de cada militar foi “trocada por outra coisa qualquer”, “coisificando-os” em nome de um “preço qualquer”, um qualquer “custo-benefício” calculado por um Poder económico e financeiro que, de condicionante das opções humanas e políticas, se transformou em determinante dessas opções, usurpando o Poder político e pondo-o ao seu serviço?
Ø Se assim é, perante quem se subordina o Poder militar?
Ø Se assim é, perante quem os militares juram o sacrifício da própria vida?
Será possível admitir um elevado grau de ingenuidade nesta reflexão. No fundo, todos estaremos (mais ou menos) conscientes de que a práxis política dos “Estados de direito democrático” segue, há décadas (pelo menos) o que Clement Attlee afirmou em 1957:
            “A democracia significa um governo pela discussão, mas só é eficaz se se conseguir impedir que as pessoas falem.”
 O problema é que a guerra não é uma questão apenas militar, ou apenas política: é uma questão humana que diz respeito a todos os seres humanos.
  As funções soberanas do Estado começam, e acabam, em cada um de nós, como actores protagonistas de um Presente partilhado solidariamente e da construção do Futuro comum que ansiamos.
  Sem assumirmos e praticarmos esse protagonismo, estaremos a abdicar da nossa “inviolável dignidade humana”, da nossa “inviolável soberania”, aceitando que um Poder, interno ou externo as “substitua por outra coisa qualquer”, dependendo esta “coisa qualquer” do preço que estiver a ser “negociado”.
  Que escolha fazemos?

Referências:
(1) Citado no “Documento de Trabalho 26/CNECV/99 – Reflexão Ética sobre a Dignidade Humana”, 5Jan1999, co Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.
(2) Idem.
(3) Citado por André Gustavo Corrêa Andrade in “O Princípio Fundamental da Dignidade Humana e sua Concretização Jurídica”.
(4) Lexicoteca.
(5) A. Almeida de Moura, “Estado e Forças Armadas: vectores humanos do poder”, in “Educar, Defender, Julgar”.
(6) Idem.
(7) Edgar Morin, “O Método V. A Humanidade da Humanidade. A Identidade Humana”.
(8) A. Almeida Moura, obra citada.
(9) Idem.
(10)                 CNECV, obra citada.
(11)                 Daniel Jonah Goldhagen, “A Pior das Guerras. Genocídio, Extermínio e Violência no Século XX”.
(12)                 Idem.
(13)                 Ibidem.
(14)                 Ibidem.
(15)                 Ibidem.
(16)                 “Extending American Power. Strategies to Expand U.S. Engagement in a Competitive World Order”, Center for a New American Security.
(17)                 “Completing Europe’s Economic and Monetary Union”.

     
(Texto apresentado na Conferência "Funções Soberanas do Estado. Em nome do povo, respeito pela Constituição", na Universidade Católica, em 20 de Outubro de 2016. A Conferência foi organizada por 15 estruturas associativas e sindicais, tendo eu participado com este texto, em representação da Associação Nacional de Sargentos, da Associação de Oficiais das Forças Armadas, e da Associação de Praças.)                                                                                                                                                           
                         



Crítica do Pensamento Único: Como Pensar em vez de O Que Pensar

                  Crítica do Pensamento Único: Como Pensar em vez de O Que Pensar

    “Aprender O Que Pensar” é a opção política que o Poder dominante nos impõe, “coisificando-nos” através da “formatação”.
  “Aprender Como Pensar” é a opção que nos cabe tomar se não abdicarmos da nossa Humanidade.
  Importa reflectirmos, individual e colectivamente, sobre esta dicotomia, pois as opções que fizermos serão fundamentais para o Futuro que ansiamos construir e que reconheçamos como nosso.
  Um “exemplo prático”, exposto passo a passo, ajudar-nos-á a compreender a urgência com que devemos assumir esta escolha, concretizando-a:
1.      O Juramento de Bandeira que todos os militares, individual e publicamente, fazem perante a Nação, contém, de forma clara e inequívoca, a disponibilidade do “sacrifício da própria vida, se necessário for”.
2.      Esse “sacrifício da própria vida” coloca-se dentro da defesa intransigente da Pátria e das suas instituições se um inimigo contra ela atentar. Isto é, no mesmo Juramento o militar assume “matar o inimigo, se necessário for”.
3.      Nem o “sacrifício da própria vida” resulta de o militar sofrer de uma qualquer patologia suicida, nem o “matar outro ser humano” resulta de uma qualquer psicopatia assassina: ambas são exigentíssimas escolhas que os militares fazem.
4.      Escolhas que se fundamentam em Valores, Princípios, Sentimentos que os militares reconhecem como seus, individualmente, e como dos Nós a que pertencem e em que se revêem.
5.      A Lei Orgânica do Ministério da Defesa Nacional, Decreto-Lei nº 183/2014, de 29 de Dezembro de 2014, extinguiu a Direcção-Geral de Pessoal e Recrutamento Militar e a Direcção-Geral de Armamento e Infra-estruturas Militares, e criou a Direcção-Geral de Recursos da Defesa Nacional. Quer dizer, os militares deixaram de ser Pessoas e passaram a ser “recursos”: foram legalmente “coisificados”!
6.      O actual Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR), Decreto-Lei nº 90/2015, de 29 de Maio de 2015, impõe o “Dever de Isenção Política”.
7.      Estes dois diplomas são coerentes entre si, e complementam-se: “castrados politicamente” e “adequadamente objectificados”, os militares passam a constituir um “rebanho dócil, acéfalo, acrítico, autómato”, sempre disponível e obediente às ordens do Poder político.
8.      No entanto, esta situação é absolutamente incompatível com o Juramento de Bandeira: as exigentíssimas escolhas que ele representa – o morrer e o matar em nome de Valores, Princípios e Sentimentos assumidos como superiores à própria Vida – são escolhas incontornavelmente políticas, e humanas, que só são possíveis de serem concretizadas por seres humanos Inteiros e Livres, e não por “recursos apolíticos”.
9.      Como ultrapassar esta violenta contradição? Alterando o EMFAR e a Lei Orgânica do MDN? Alterando o Juramento de Bandeira? E se for este o caso, perante quem, ou o quê, os militares irão jurar a Vida, a própria, e a dos outros seres humanos, os “inimigos”? E esse Juramento será credível quando feito por um “recurso”?
10.  Portugal ratificou, em 2002, o Estatuto de Roma, que institui o Tribunal Penal Internacional. É, assim, uma Lei Internacional a que o país está vinculado.
11.  Nele encontram-se definidos o que internacionalmente se reconhecem ser Crime de Genocídio (Art. 6º), Crimes Contra a Humanidade (Art. 7º) e Crimes de Guerra (Art. 8º).
12.  Também nele se encontra explicitamente imposta a “responsabilidade individual” (Art. 25º) de alguém que seja arguido de um desses Crimes. Desta forma, está afastada a possibilidade de ser apresentado como argumento de defesa o “cumprimento de ordens”.
13.  Impõe, ainda, uma “responsabilidade acrescida” aos superiores hierárquicos (Art. 28º) desse arguido.
14.  Tendo presente que as acções militares levadas às suas últimas consequências – o confronto armado entre as partes em conflito – têm demonstrado serem circunstâncias em que a probabilidade de acontecerem crimes daquela natureza é alta; e lembrando o General George Marshall – “Na guerra, em cada combatente há uma besta pronta a quebrar os grilhões que a prendem, pelo que cabe a cada oficial mantê-la dominada em si e nos seus homens” -; torna-se evidente que é imposto aos militares que não sejam meros “recursos obedientes, acéfalos, acríticos, autómatos, apolíticos”.
15.  Assim, os dois diplomas que tanto influem na vida dos militares são incompatíveis com o Estatuto de Roma.
  Mas este “exemplo prático” não é aplicável apenas aos militares. De facto, se é verdade que, no limite, os militares fazem a guerra, esta é, no dizer de Clémenceau, Presidente da França no pós-I Grande Guerra, “um assunto demasiado sério para ser tratado apenas por generais”. Por outro lado, podemos também afirmar que, para o Movimento das Forças Armadas, “a guerra é um assunto demasiado sério para ser tratado apenas por políticos”.
  No entanto, ambas as afirmações são redutoras: “A guerra é um assunto tão sério que, imprescindivelmente, nos diz respeito a todos”. Lembremos que nas duas Grandes Guerras do século XX (como em todas as outras!), os mortos civis foram em muito maior número que os mortos militares (embora todos seres humanos…). Recordemos, igualmente, o que da guerra disse Paul Valéry – “A guerra é um massacre entre gente que não se conhece para proveito de gente que se conhece mas não se massacra”.
  De facto, não podemos reflectir sobre este “exemplo prático” isolando-o do todo que é a sociedade em que vivemos, que desejamos democrática, em que nos sintamos inteiros e livres. Nesse sentido, somos confrontados com questões a que, incontornavelmente, teremos de dar resposta:
  Escolher é um verbo que praticamos diariamente, em múltiplos aspectos da nossa Vida. Imediatas ou a mais longo prazo, as consequências dessas escolhas questionam-nos quanto à sua oportunidade e aos seus resultados, em nós, e nas relações que temos – uma escolha também! – com o Outro, com os Outros.
  Quer isto dizer que ao acto de escolher é inerente um certo grau de incerteza, que procuramos ultrapassar buscando informações e definindo critérios de avaliação – de circunstâncias, de coisas, de sentimentos, de objectivos – que nos permitam sustentar, e justificar (perante nós próprios, perante os Outros), as escolhas que fazemos.
  Mas o universo dos “Se” é vastíssimo: “Se” isto, “Se” aquilo, “Se” este, “Se” aquele, “Se” a escolha tivesse sido outra … A incerteza que a escolha comporta é irmã gémea do risco: a escolha feita poderá ter uma consequência, um resultado contrário, imprevisto, anómalo, em relação ao que perspectivávamos, ao que desejávamos.
  E se – de novo, “Se”! – as circunstâncias forem de difícil avaliação, as coisas forem múltiplas e diversas, os sentimentos forem contraditórios, então o nível do risco aumenta, criando-nos preocupação, ansiedade, instabilidade, no acto de concretizarmos a escolha.
  Essa multiplicidade, essa multi-diversidade estão, hoje, tão vincadamente presentes na nossa Vida, que o nível de risco com que nos confrontamos é-nos cada vez mais pesado, quer a escolha, as escolhas, a fazer se situem no âmbito do Eu ou no de um Nós em que nos reconhecemos, e ao qual desejamos continuar a pertencer. Já não estaremos a falar de instabilidade, mas sim de insegurança.
  O mundo em que vivemos é, de facto, incerto, instável, inseguro. Tanto que as informações e os critérios de avaliação onde procuramos apoio para sustentar as nossas escolhas, individuais e colectivas, se nos apresentam fortemente contraditórios, pondo-nos a persistente dúvida sobre a nossa capacidade de levarmos por diante as nossas escolhas.
  Uma dúvida agravada pela extrema complexidade, e conflitualidade, da realidade: a nossa limitada capacidade individual de a entendermos, e interiorizarmos, na sua plenitude, deixa-nos reféns da superfície das circunstâncias, dos acontecimentos, levando-nos a refugiarmo-nos dentro do que para nós é imediatamente compreensível, numa resposta à medida do que somos – com os nossos mitos, fantasmas, medos, contradições. Ao mesmo tempo, sentimo-nos confrontados, ameaçados até, pelo desconhecido, pelo diferente, por tudo o que possa implicar envolvermo-nos mais profundamente, para além da superfície das coisas, na procura do sentido que essa realidade - e as escolhas que sobre ela, e com ela, façamos -possa ter, ou vir a ter, no caminho que percorrermos, individual e colectivamente.
  Torna-se-nos necessário identificarmos que interdependências e inter-relações (do homem consigo e com o Outro; do homem com a Natureza) aconteceram/acontecem que nos permitam compreender de onde viemos, que caminhos percorremos, que escolhas fomos fazendo, para chegarmos a este Presente inseguro, e para podermos enfrentar, com ânimo, o desafio das escolhas a fazer para construirmos o caminho, individual e colectivo, para o Futuro.
  A busca desse nexo de interdependências e inter-relações confirmar-nos-á que as escolhas que fomos fazendo ao longo da Vida, como um Eu, como um Nós, não se sustentaram apenas em análises frias e objectivas das causas, efeitos e resultados que definiam e delimitavam cada uma dessas escolhas.
  De facto, imaginação, criatividade, intuição, sentimento, valores, princípios, acompanharam (com maior ou menor presença activa) a Razão nessas escolhas. Contraditórias, e tantas vezes desastrosas, estas foram sendo as escolhas da nossa Humanidade.
  Porém, a evolução científica e tecnológica alcançada no século XX (sobretudo a partir da II Grande Guerra), remeteu a Razão para a fria lógica de um racionalismo autoritário e manipulador, onde deixaram de caber essas expressões humanas. Disse Einstein, há cerca de 70 anos: “É escandalosamente óbvio que a nossa tecnologia excede a nossa Humanidade”. Um escândalo tão mais grave quanto a tecnologia desenvolvida atingiu, e detém, com o poder nuclear, o poder de destruição massiva, global. Escândalo também porque hoje detemos o conhecimento, a capacidade, o poder para assegurar a construção de uma Humanidade, de um Nós, onde não haja exclusões de nenhuma espécie e, no entanto, as desigualdades e discriminações não cessam de aumentar.
  Esta mesma fria lógica (de interesses) reverteu a Ciência num cientismo que considera como seus meros objectos de uso corrente, um planeta inteiro e os seres que o habitam, humanos e não-humanos.
  Esta fria lógica não tem uma origem abstracta: é uma consequência poderosíssima do domínio do homem sobre o homem e do domínio do homem sobre a Natureza. O racionalismo (o primado da racionalização, subjugando a racionalidade) e o cientismo (a rentabilização da Ciência através da alienação consumista) são apenas expressões mais “subtis” do exercício de um Poder dominante. E mais sofisticadas se tornam quando a técnica e a tecnologia que foram sendo desenvolvidas assumem a visibilidade desse exercício do Poder, ultrapassando o seu estatuto de parceiras no desenvolvimento humano, para desempenharem o papel, inicial, de condicionantes e, posteriormente, de determinantes desse desenvolvimento.
  O papel condicionante é cumprido por uma burocracia rígida e autoritariamente implantada que, impedindo que a imaginação, a criatividade a intuição, o sentimento, ao valores e princípios, tenham lugar na análise e nas escolhas do Presente, impõem a não-existência de quaisquer outras escolhas que não as do Poder dominante. De pouco valerá sabermos que “a burocracia é a arte de converter o fácil em difícil por meio do inútil” (Carlos Peraza) se, ameaçada, a burocracia do Poder usa todos os meios e instrumentos, mesmo os mais ignóbeis, para manter a sua posição hierárquica de primeira executante do Poder dominante.
  Por sua vez, o papel determinante usa o mesmo conceito (“Não Há Alternativa” – um conceito intelectualmente desonesto, pois expressa, de facto, a escolha do Poder dominante) e o mesmo agente (a hierarquia burocrática de topo) para que esse Poder não seja ameaçado, mas também para que todas as escolhas, individuais e colectivas, sejam apenas e só as que ele define como “necessárias, adequadas e justas”. Procede, assim, a uma manifesta e impiedosa “colonização do Futuro” (Daniel Innerarity). (Não foi isto que se passou, passa, com a Grécia? Não é esta ameaça que nos é imposta, em permanência, por um Poder dominante, exterior e iniludivelmente autoritário?).
  Para este Poder dominante, o mundo e os seres não-humanos são uma propriedade sua que usam de acordo com as suas apetências e interesses; e os seres humanos são meros objectos que produzem e que consomem, para seu benefício. Se os seres humanos deixam de produzir, ou deixam de consumir, são objectos descartáveis; se não produzem nem consomem são objectos elimináveis. (Não é isto que se passa com os Refugiados, que fogem da destruição, da fome, da guerra, da morte, na Síria, no Afeganistão, no Iraque, na Líbia, na Nigéria, no Sudão,…?)
  Acontece, no entanto, que a evolução tecnológica tem, entre muitas outras, uma consequência “politicamente perversa”. Enquanto há 70 anos ainda seria credível dizermos que “o Conhecimento que adquirimos na juventude nos acompanha por toda a nossa Vida”, hoje isso é impensável: o “período de vida útil do Conhecimento encurtou-se drasticamente”. É-nos imperioso estarmos disponíveis para a Inovação constante (“o futuro é ontem!”), para o Aprender permanente.
  Esta evolução rapidíssima, e poderosa, confronta-se, hoje já, com a burocracia estereotipada, incapaz de sair da sua “crença natural”: impor, custe o que custar, o stato quo do “Não Há Alternativa”. Porquê? Porque hoje é impossível identificar O problema e A sua solução, UMA causa e O seu efeito – algo que define, teórica e estruturalmente, a burocracia.
  De facto, hoje há problemas que são causas E que são efeitos, e soluções que são efeitos E que são causas, numa extensa rede de relações múltiplas e multi-diversas, interdependentes, e inter-agindo permanentemente.
  Esta complexidade vem arrastando a burocracia nas mãos do Poder dominante para a incapacidade de responder a tamanho desafio, a não ser pela violência (como na Grécia, como com os Refugiados). Estes problemas complexos – ou “malévolos” – conduzem a burocracia a dar-lhes “respostas claras, simples e erradas” (Henry L. Mencken). A austeridade do tipo “Não Há Alternativa” é um exemplo de como essa burocracia já não consegue esconder o domínio totalitário e desumano exercido pelo Poder dominante.
  Um domínio que se mantém porque nos enreda num racionalismo órfão da imaginação, da criatividade, da intuição, do sentimento, dos valores e princípios; porque nos agrilhoa a um cientismo possessivo e fragmentador do Conhecimento; porque nos sujeita a uma burocracia técnica desumana; porque nos objectifica, ao mesmo tempo que transforma a tecnologia em sujeito da História; porque nos manipula, ensinando-nos “o que pensar”, e assim “apascentar-nos” como rebanho dócil, acéfalo, acrítico, autómato.
  Para rejeitarmos esta objectificação, é-nos imperioso, e urgente, reivindicarmos que “a idade dos porquês” se prolongue por toda a vida. Mas, se é verdade o que disse Ortega Y Gasset – “O homem é ele próprio e a sua circunstância” -, hoje somos confrontados com uma constante profundamente desafiadora: as circunstâncias que nos fazem ser mudam, movimentam-se, inquietam-nos permanentemente. Enfrentá-las de corpo inteiro – com a Razão, com a Acção, mas também com a Imaginação, a Criatividade, a Intuição, o Sentimento -, isto é, não aceitando passivamente que as nossas circunstâncias nos determinem mas, pelo contrário, aceitarmos o desafio de com elas dialogarmos, mudando-as, movendo-as para um caminho por nós, individual e colectivamente, escolhido, numa inquietação sempre presente, sentindo que uma “qualquer coisa está para acontecer … qualquer coisa que eu tenho que fazer … essa coisa é que é linda” (José Mário Branco), será a nossa forma de resolvermos esse confronto.
  Nesta luta contra o domínio da superfície das coisas, das circunstâncias que nos são impostas pelo Poder dominante, é imprescindível fazermos as perguntas cruciais: Porquê? Para quê? Quando? Onde? Por quem? Para quem? Com quem? Como?
  Dito de outro modo: é imperioso aprendermos “Como Pensar”.
    A nossa opção é difícil? Sem dúvida. Dura? Sim, muito. E é um acto subversivo, mas necessário, adequado e justo.
  Por seu lado, a opção do Poder dominante é injusta, ditatorial e desumana.
  Que escolha fazemos, então?
(Texto apresentado em 14 de Setembro de 2016, na Galeria Verney, Oeiras, numa iniciativa do núcleo de Oeiras-Cascais da A25A. Posteriormente publicado n'"O Referencial", da A25A, saído em Outubro de 2016)

sábado, 24 de setembro de 2016

                  “Ratings” e “Mercados”: e Nós?

  Nos órgãos de comunicação social têm sido constantes as referências a agências de “rating” e aos mercados, e à forma como o governo, e o país (nós!) se relaciona, ou deve relacionar com ambos.
  Antes de apresentarmos uma perspectiva de análise de cada um destes actores (financeiros, económicos, políticos, sociais), uma breve reflexão sobre os órgãos de comunicação social, sobre o que nos dizem, lendo-os, ouvindo-os, vendo-os.
  Um primeiro ponto respeita à Liberdade de Expressão. É um Direito inalienável, conquistado pelo 25 de Abril. E por sê-lo, contém em si o Direito ao Contraditório, assegurado por Lei, e exigido pela Ética no exercício dessa Liberdade. Esta, por sua vez, impõe, por um lado, a objectividade e imparcialidade da notícia e, por outro, a assunção da subjectividade do comentário e da opinião.
  Assumir a subjectividade do comentário e da opinião demanda que o que se escreve seja terminado com a assinatura de quem escreve, ou o que se diz seja suportado pela voz e pelo rosto de quem afirma. A relevância e a credibilidade do que é escrito ou dito é, pois, refém do reconhecimento que possamos atribuir a quem escreve ou diz algo, independentemente de concordarmos ou discordarmos desse algo.
  Já quanto à objectividade e imparcialidade da notícia podemos constatar que não estão minimamente garantidas. De facto:
1.      Misturar no mesmo texto, escrito ou dito, a notícia com um seu comentário, é uma prática demasiado frequente para que possamos considerar estarmos perante uma informação objectiva e imparcial, mesmo se assinado, ou dito, por alguém que, dessa forma, pretenda dar credibilidade à notícia.
2.      Retirar da informação que se quer transmitir um aspecto específico, uma frase, é já uma escolha – isto é, uma subjectividade – de quem escreve, ou diz, essa informação.
3.      Sequenciar as informações que se querem transmitir (ao longo de um telejornal, na paginação de um jornal, em cada página, …) é, também, uma escolha, uma subjectividade.
4.      A própria selecção de informações a transmitir, relevando umas, secundarizando outras, omitindo ainda outras, nada tem de objectividade, nem de imparcialidade.
  É neste contexto que nos devemos relacionar com o que lemos, vimos e ouvimos nos órgãos de comunicação social. Não assegurando a objectividade e a imparcialidade, os órgãos de comunicação social são manipulados pelos diversos actores (financeiros, económicos, políticos, sociais) que desejam ver transmitida a sua informação mas, simultaneamente, manipulam esses mesmos actores (no fundo, todos nós), no sentido de aceitarem como objectiva e imparcial a informação que é escolhida ser transmitida.
  É imperioso que todos sejamos capazes de ver, ouvir e ler com a capacidade crítica que é imprescindível ao exercício da Liberdade de Expressão, pois esta não contém apenas o Direito ao Contraditório: só se torna verdadeiramente efectiva quando sustenta uma escolha consciente, livre e subjectiva de cada um de nós.
  Com este “pano de fundo”, como podemos analisar as acções das agências de “rating”?
  Comecemos por uma pergunta impertinente: o que é uma agência de “rating”?
  - Uma Instituição estatal? Não!
  - Uma Organização Não Governamental? Não!
  - Uma Instituição Pública de Serviço Social? Não!
  - Um Departamento de Investigação de uma Universidade? Não!
  - Um Departamento da Organização das Nações Unidas? Não!
  - Uma Empresa Privada? Sim!
  Sendo uma Empresa Privada, uma agência de “rating” tem como seu objectivo crucial, senão único, gerar os lucros adequados à satisfação dos seus accionistas.
  Será que esta Empresa Privada produz, em quantidade e qualidade, os bens necessários para que ao valor acrescentado conseguido venha a corresponder o lucro desejado? Não, a agência de “rating” não produz bens, produz “pareceres”.
  Pareceres que são o resultado de avaliações, de carácter económico e financeiro, de empresas e de Estados, e que concluem por uma opinião sobre o modo como a empresa, ou o Estado avaliado interage, e deve interagir, com os diversos actores financeiros, económicos, políticos e sociais, nas suas múltiplas e diversas inter-relações que compõem o mundo de hoje, a que chama “mercados”.
  Acontece que os critérios, os instrumentos e os autores dessas avaliações não são conhecidos. Se “os mercados” fossem livres – isto é, todos os seus actores concorressem entre todos, sem “atropelos éticos” – e tendo em conta o velho ditado “O segredo é a alma do negócio”, seria, eventualmente, compreensível (embora ainda inaceitável) esse desconhecimento.
 No entanto, as conversações ultra-secretas que decorrem quanto ao Transatlantic Trade and Investement Partnership (TTIP), ao Investor-State Dispute Settlement (ISDS), ao Comprehensive Economic and Trade Agreement (CETA), dizem-nos claramente que “os mercados” não são livres: há regras a cumprir.
  Regras a cumprir por todos os actores que intervêm nos “mercados”, em pé de igualdade – as regras são as mesmas para todos, todos são iguais perante as regras. Mas se assim for, haverá efectivas perspectivas de lucro para uma agência de “rating”? E porventura havendo, não serão débeis demais para satisfazer os seus accionistas?
  Como ultrapassar esta indesejada “carência de resultados”?
  Se formos um pouco mais fundo, constataremos que há actores e actores, isto é, há protagonistas e figurantes. E são os protagonistas que fazem as regras para os figurantes cumprirem, numa “adequada flexibilidade legislativa” ou, dito de outro modo, uma “necessária instabilidade” (financeira, económica, política, social) que permita a produção de “imprescindíveis pareceres”, plenos de “fundadas avaliações”, e de “ponderadas e judiciosas conclusões”, contendo “incontornáveis soluções”. Ah, e garantindo “firmes perspectivas de lucro”…para os protagonistas (neles incluindo as agências de “rating”, claro!).
  É esta situação que é designada por “mercados”. E o que ficou dito é uma expressão suave para traduzir o modo como um seu dilecto representante os definiu – “Os mercados são amorais” – confirmando que em todas as suas acções, omissões, e inter-acções, os Valores, os Princípios, a Ética, são desprezados, pois apenas contam os Interesses, pessoais e de grupo. E se daquela “necessária instabilidade” puderem surgir conflitos de Interesses entre os protagonistas, serão dirimidos pela força, uma vez que apenas “o mais forte tem direito á liberdade”.
  Uma agência de “rating” é uma empresa privada que age em exclusivo nome desses interesses: os resultados financeiros, económicos, políticos e sociais “aconselhados” nos seus “pareceres” são aqueles que correspondam à obtenção do máximo lucro para os seus accionistas, independentemente dos resultados a que cheguem os seus avaliados.
  É aqui que os órgãos de comunicação social nos informam, com palavras mais ou menos claras, mas sem margem para dúvidas, que todos nós, cidadãos supostamente livres e inteiros deste país supostamente soberano e independente, nos devemos situar.
  Sejamos, então, impertinentes, e perguntemos:
  - Se pertencemos aos “mercados”, e os “mercados” são amorais, nós também devemos ser amorais?
  - Se não devemos ser amorais, podemos sair dos “mercados”?
  - Se não somos amorais mas não pudermos sair dos “mercados”, somos “promovidos” a escravos?
  - Se não pertencermos aos “mercados” por não sermos amorais, por que razões temos de suportar as perdas de lucro e as falências dos “mercados”?
  - Se nos é imposto pertencer aos “mercados”, quando um militar jura “o sacrifício da própria vida”, faz esse juramento em nome de uma…amoralidade?
  - Se esse juramento é feito em nome de uma amoralidade, será ainda possível falarmos de militares, da condição militar, de forças armadas?