segunda-feira, 24 de outubro de 2016

Dignidade Humana, Soberania, Estado e Poder Uma Reflexão sobre as suas Interacções

     Dignidade Humana, Soberania, Estado e Poder
       Uma Reflexão sobre as suas Interacções

  A Constituição da República Portuguesa afirma, no seu Artigo 1º (República Portuguesa)
   “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da
    pessoa humana e na vontade popular empenhada na construção
    de uma sociedade livre, justa e solidária.”
  Dissecando-o, podemos constatar que contém uma definição – “Portugal é uma República soberana” -, e um propósito – “a construção de uma sociedade livre, justa e solidária”. Para ambos explicita dois inequívocos e determinantes conceitos que constituem as suas bases de sustentação – a “dignidade da pessoa humana” e a “vontade popular”.
  Sendo a Constituição o vértice superior da estrutura orgânica e da orientação prática – social, política, cultural, jurídica, económica – da comunidade em que nos reconhecemos e a que chamamos nossa, importa entendermos os significados daqueles conceitos.
  Assim, e quanto à “dignidade da pessoa humana”, poderemos acompanhar Immanuel Kant (1): “No reino dos fins, tudo tem um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço pode pôr-se em vez dela qualquer outra coisa como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade”.
  E seguindo ainda Kant (2): “Age de tal modo que trates a humanidade tanto na tua pessoa como na do outro sempre e ao mesmo tempo como um fim e nunca simplesmente como um meio”.
  O fim em si mesmo que cada ser humano é exige o respeito por si próprio e, simultaneamente, o reconhecimento do outro, de qualquer outro ser humano, como também um fim em si mesmo.
  Desta forma, reconhecimento e respeito recíprocos assumem duas das vertentes imprescindíveis do diálogo de cada ser humano com o Outro: a dignidade humana é um valor intrínseco ao ser humano e determinante para a co-existência dos seres humanos.
  Isto mesmo é expresso no Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948:
    “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo;”
 bem como no seu Artigo 1º
     “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em
  direitos.”
  Por outro lado, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, de 2000, no seu Preâmbulo, não foge deste rumo:
     “Consciente do seu património espiritual e moral, a União baseia-se nos valores individuais e universais da dignidade do ser humano, da liberdade, da igualdade e da solidariedade; assenta nos princípios da democracia e do Estado de Direito. Ao instituir a cidadania da União e ao criar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, coloca o ser humano no cerne da sua acção.”
para, no seu Capítulo I – DIGNIDADE – Artigo 1º, afirmar
    “A dignidade do ser humano é inviolável. Deve ser respeitada e protegida”.
  Da dignidade humana diz I. Wolfgang Sarlet (3) que é “a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer acto de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover a sua participação activa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos”.
  Quer isto dizer que a comunidade é constituída por um conjunto de seres humanos que reconhecem e respeitam, em si próprios e em cada um dos outros, uma “qualidade intrínseca e distintiva”, que designamos por dignidade humana. Ou seja, uma comunidade não é um conjunto de seres uniformes, uma soma de seres indiferenciados, mas antes uma multidiversidade de Eus, distintos nas suas capacidades de autonomia de decisão em relação à sua própria vida, mas participantes activos no viver comum, também ele pleno de decisões, sendo estas resultantes do diálogo sustentado no valor que une esses diversos Eus, a dignidade humana.
  É desta participação activa no viver comum, deste diálogo permanente, intenso, tantas vezes tenso, contraditório, mas sempre inteiro e livre, que resulta a vontade popular. Vontade popular que toma forma a partir de um Passado em que todos os membros da comunidade se revêem e reconhecem como seu; assumem um Presente partilhado e solidário; e se propõem um Futuro comum, construído por todos de acordo com as suas capacidades, numa reciprocidade e complementaridade de direitos e deveres, de modo a se apresentarem perante todas as outras comunidades conscientes da multidiversidade de Eus colectivos, também eles autónomos na sua capacidade de decisão, mas participantes activos no viver comum colectivo.
  A soberania será, pois, a expressão de uma dignidade humana colectiva, não como uma uniformizante soma, mas como uma pluralidade de expressões dessa mesma dignidade humana, que se reconhecem e respeitam mesmo se constituem uma pluralidade de diferentes.
  Voltando à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, podemos constatar que no seu Preâmbulo está vertido o reconhecimento dessa inviolável dignidade humana colectiva que designámos por soberania:
    “A União contribui para a preservação e o desenvolvimento destes valores comuns [citação anterior], no respeito pela diversidade das culturas e das tradições dos povos da Europa, bem como da identidade nacional dos Estados-Membros e da organização dos seus poderes públicos aos níveis nacional, regional e local;”.
  De igual modo a Constituição expressa, de forma clara, no seu Artigo 2º (Estado de direito democrático), este conjunto de valores fundacionais:
    “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democrática, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”.
e também no nº 1 do seu Artigo 3º (Soberania e legalidade):
     “A soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as normas previstas na Constituição”.
  Estes dois artigos remetem-nos para o terceiro vértice da dialógica em cuja práxis sustentamos o desenvolvimento pleno da nossa dignidade individual, como qualquer ser humano, e, ainda, da nossa dignidade colectiva, como qualquer comunidade de seres humanos – o Estado, isto é, “uma sociedade territorial juridicamente organizada, dotada de soberania, objectivada na realização do bem comum”.(4)
  Nesta relação dialógica Indivíduo – Comunidade – Estado, “O Indivíduo constrói-se construindo uma Comunidade que lhe sustente um sentimento de pertença. Por sua vez a Comunidade constrói-se construindo Indivíduos solidários entre si, dentro de padrões comportamentais reconhecidos e praticados por todos, dando-lhes uma perspectiva de Futuro comum. Por outro lado, ambos constroem uma entidade, o Estado, colocada ao seu serviço, para a sua defesa individual e colectiva, para o desenvolvimento do seu bem-estar, também individual e colectivo, mas à qual é concedido o poder de se fazer obedecer, de novo individual e colectivamente, no caminho a percorrer para a edificação desse bem comum por todos desejado”. (5)
  Importa relevar que a concessão ao Estado do “poder de se fazer obedecer” não lhe permite usurpar para si “a soberania que reside no povo”, na Comunidade. Nem o “aprofundamento da democracia participativa” se esgota na construção dessa entidade: “…é imperioso que os membros da comunidade, indivíduos e instituições, se revejam nessa identidade do Estado assim constituído. A paz social interna, e o reconhecimento externo, não fazem da comunidade um conjunto de actores secundários e passivos, cuja função fique reduzida a permanecerem “habituados a obedecer”, sacralizando o Estado como um super-ego individual e colectivo”. (6)
  De facto, também nesta área a nossa Constituição não deixa margem para dúvidas:
     Artigo 22º  (Responsabilidades das entidades públicas)
    “O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”.
     Artigo 48º (Participação na vida pública)
     “1. Todos os cidadãos têm o direito de tomar parte na vida política e na direcção dos assuntos públicos do país, directamente ou por intermédio de representantes livremente eleitos.
       2. Todos os cidadãos têm o direito de ser esclarecidos objectivamente sobre actos do Estado e demais entidades públicas e de ser informado pelo Governo e outras entidades acerca da gestão dos assuntos públicos”.
        Artigo 108º (Titularidade e exercício do poder)
        “O poder político pertence ao povo e é exercido nos termos da Constituição”.
          Artigo 109º (Participação política dos cidadãos)
          “ A participação directa e activa de homens e mulheres na vida política constitui condição e instrumento fundamental de consolidação do sistema democrático, devendo a lei promover a igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos e a não-discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos”.
            Artigo 117º nº1 (Estatuto dos titulares de cargos políticos)
            “Os titulares dos cargos políticos respondem política, civil e criminalmente pelas acções e omissões que pratiquem no exercício das suas funções”.
  Estes artigos da Constituição demonstram, ainda, que o Estado não é uma entidade abstracta e sacralizada (7): “…se é verdade que ela se consubstancia num aparelho organizado, movimentado, orientado, não podemos esquecer que a condução destas acções é feita por pessoas, isto é, por alguns membros da comunidade a quem os restantes de algum modo confiaram a gestão de parte significativa da sua vida e da sua perspectiva de futuro, individual e colectivo”. (8)
  “Plurais e contraditórios como são todos os seres humanos, as suas construções humanas – neste caso Comunidade e Estado – são-no também. Daí que esta relação dialógica Indivíduo – Comunidade – Estado seja extremamente complexa, contraditória, problemática. E tanto mais quanto o factor que determina as acções de cada um dos vértices nessa relação é o Poder”. (9)
  Não é escopo desta reflexão abordar a questão do Poder nas suas múltiplas formas e manifestações nas áreas em que os seres humanos são actores protagonistas – política, cultura, economia, ciência, justiça, etc. Mas é necessário partirmos do que acima ficou expresso para uma, também ela parcelar, abordagem da componente militar da Defesa Nacional, tendo presente algumas daquelas manifestações do Poder que relevamos como essenciais para irmos mais fundo do que a superfície do nosso presente nos alicia a fazer.
  


  Assim, e sem a mínima pretensão de esgotarmos cada uma das vertentes da vivência humana em que é visível a acção do Poder, voltemos à dignidade humana, do seu significado à prática de que todos nós temos vindo a ser capazes ao longo da História da humanidade.
 Dissemos que a dignidade do ser humano é inviolável. Que é um valor, porque nada a pode comprar. Que esse valor é fundacional para a construção de cada ser humano, na sua plenitude física e espiritual, como um ser inteiro, livre e autónomo. Que é essencial reconhecermos em nós próprios e no Outro, qualquer que ele seja, essa idêntica, e recíproca, dignidade humana.
 Mas se o Outro for diferente, somos capazes desse reconhecimento total e de o assumir sem quaisquer dúvidas? Quão diferente pode ser o Outro para nos sentirmos à-vontade para lhe reconhecermos, por inteiro, a sua dignidade humana? Não esconderemos um certo desconforto (chamemos-lhe assim) afirmando convictamente que a tolerância é um valor de que não abdicamos, esquecendo que tolerar é um verbo de acção que se conjuga sempre verticalmente e sempre de cima para baixo, acompanhado de um “Se” onde se agrupam as condições (de diversíssima ordem) que o Outro deve cumprir para merecer essa nossa tolerância?
 De facto, em toda a História da Humanidade, o Outro Diferente tem sido constante vítima de todas as formas de segregação, de rejeição, de discriminação.
 Dois exemplos podem confirmar esta conclusão:
1.     A Declaração Universal de Direitos Humanos foi ratificada pela maioria dos Estados em 1948. No entanto, nem o reconhecimento generalizado da milenar luta das Mulheres contra o domínio do homem conseguiu evitar que os Direitos das Mulheres só fossem formalmente reconhecidos como Direitos Humanos em 1993, na Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, em Viena: “Os direitos humanos das mulheres e das raparigas são uma parte inalienável e indivisível dos direitos humanos universais”.(10)
2.     Indo para além de Hannah Arendt e a “banalização do mal”, Daniel Jonah Goldhagen (11) caracteriza o Outro Diferente como aquele a quem não nos é fácil reconhecer a sua “inviolável dignidade humana”:
a.     Os “inimigos existenciais”, como aqueles que podem contrariar, mesmo impedir, o nosso bem-estar presente e o seu desenvolvimento para um futuro de melhores níveis de bem-estar, e que devem “ser derrotados antes de nos derrotarem.” (12);
b.     Os “sub-humanos”, como aqueles a quem não reconhecemos quaisquer características humanas, pois são apenas “bárbaros ou bestas ou animais… indignos de consideração moral.” (13):
c.      Os “heréticos”, como aqueles que defendem diferentes ideologias, laicas ou religiosas, divergindo “voluntariamente do credo consagrado e procuram fazer-nos mal ou evitar a salvação da humanidade.” (14);
d.     Os “demónios”, como aqueles que são “criaturas inumanas, deliberadamente malevolentes, uma incarnação secular cristã do demónio ou dos seus lacaios.”(15)
 Estes Outros tão Diferentes suscitaram, por todo o século XX, e por todo o mundo, reacções de rejeição da sua “intrínseca dignidade humana” que foram sustentáculo, provocado e alimentado pelos Poderes instituídos (quaisquer que fossem as suas ideologias, laicas ou religiosas), para a conquista, o exercício, a manutenção e o alargamento do seu Poder, levando a sua acção ao extremo do massacre, do genocídio, do assassínio em massa.
 Estas acções devastadoras, eliminacionistas, varreram todo o século, com as mortes a ultrapassarem os 150 milhões, excluindo as verificadas nas I e II Guerras Mundiais: o massacre dos Herero e dos Nama pelos alemães (já reconhecido pela Alemanha), no sudoeste africano; dos Kikuyu no Quénia pelos britânicos; dos Arménios pelos turcos; dos judeus, ciganos, polacos, pelos alemães; os não-comunistas por Estaline, Mao, Pol Pot; os comunistas pelos filipinos, pelas juntas militares do Brasil e da Argentina; os congolenses pelos belgas; os timorenses pela Indonésia; os Maias na Guatemala; são alguns dos exemplos da tragédia humana do século XX, nascida e exacerbada pelo não reconhecimento da dignidade humana do Outro Diferente.
 Hoje permanecemos confrontados com o cumprimento do difícil dever de reconhecimento da Dignidade humana de um Outro ser humano Diferente: os refugiados que, fugindo a um presente macabro e a um futuro inexistente, já são demonizados em muitos Estados da União Europeia.
 Mas se esta abordagem diz respeito ao primeiro valor fundacional da Comunidade a que pertencemos, o da dignidade humana de cada um de nós, importa reflectirmos sobre o outro valor igualmente crucial: o da vontade popular, da soberania, autonomia e independência na escolha dos caminhos que queremos percorrer na Construção do Futuro em que nos reconheçamos inteiros e livres.
 Neste âmbito, os artigos já citados da nossa Constituição não podiam ser mais claros: “a soberania, una e indivisível reside no povo”, povo esse que tem o dever e o direito não só de ter uma participação activa em todas as esferas da acção política, mas também de ser informado, de acompanhar e de criticar as opções e omissões que os políticos e os funcionários e agentes do Estado assumam no desempenho das suas funções.
 Quer isto dizer que se a um “Estado de direito democrático” é delegada a representação da vontade popular, e o exercício de um Poder dela resultante, tal não significa que:
Ø Os políticos, funcionários e agentes do Estado, ao exercerem as suas funções “pelo povo”, se possam considerar, de algum modo, como “substitutos do povo”;
Ø Os políticos, funcionários e agentes do Estado, ao exercerem as suas funções “para o povo”, possam assumir-se, paternalisticamente, como os únicos que detêm a capacidade e as competências para “tomar as melhores decisões” para todos.
 De facto, falta exercer esse Poder “com o povo”. E vivendo nós num mundo incerto, instável, inseguro, cada vez mais complexo, é urgente que a relação dialógica entre cada um de nós, a comunidade a que pertencemos e que reconhecemos como nossa, e o Estado que nos representa, seja uma relação de efectiva confiança e respeito mútuo, em qualquer das suas áreas de actuação, por forma a que o Poder que a este foi delegado seja considerado, respeitado e sentido como factor de coesão nacional e de construção de um Futuro comum desejado por todos.
 Uma das áreas onde o Estado projecta, pela sua acção, a soberania e a vontade popular é a da Defesa Nacional. Das várias vertentes que a compõem, analisemos apenas a que respeita à Defesa Militar.
 Vejamos o que nos diz a Constituição da República Portuguesa:
Artigo 273º (Defesa nacional)
“1. É obrigação do Estado assegurar a defesa nacional.
  2. A defesa nacional tem por objectivo garantir, no respeito da ordem constitucional, das instituições democráticas e das convenções internacionais, a independência nacional, a integridade do território e a liberdade e segurança das populações contra qualquer agressão ou ameaça externa.”
Artigo 275º (Forças Armadas)
“1. Às Forças Armadas incumbe a defesa nacional militar da República.
  2. …
  3. As Forças Armadas obedecem aos órgãos de soberania competentes, nos termos da Constituição e da lei.
  4. As Forças Armadas estão ao serviço do povo português, são rigorosamente apartidárias e os seus elementos não podem aproveitar-se da sua arma, do seu posto ou da sua função para qualquer intervenção política.”
Artigo 276º (Defesa da Pátria, serviço militar e serviço cívico)
“1. A defesa da Pátria é um direito e dever fundamental de todos os portugueses.”
  Estão presentes nestes artigos da nossa Constituição os quatro conceitos que titulam este texto: Dignidade Humana, Soberania, Estado e Poder.
  E para os militares deles deriva o seu Juramento de Bandeira, concretizado em cerimónia pública e solene, e assumido individualmente perante o povo português:
             “Juro, como português e como militar, servir as Forças Armadas,
              guardar e fazer guardar a Constituição e as leis da República.
               Juro, defender a minha Pátria, e estar sempre pronto a lutar
               pela sua liberdade e independência,
               mesmo com sacrifício da própria vida.”
             
 Este juramento contém, de forma inquestionável, três exigentíssimas opções políticas e humanas:
                        - o sacrifício da própria vida
                        - o matar o Outro, um ser humano tido como inimigo
                        - o subordinar esse Poder letal, definitivo, “aos órgãos de soberania competentes”, isto é, subordinar o Poder militar ao Poder político.
  É imperioso relevar que este juramento não é assumido por seres que sofrem de uma patologia suicida para sacrificarem a vida; nem de uma psicopatia assassina para matarem outro ser humano; nem de uma anomalia masoquista para se subordinarem a um outro Poder.
 Por outro lado, e voltando à Constituição da República Portuguesa:
Artigo 7º (Relações Internacionais)
            “Portugal rege-se nas relações internacionais pelos princípios da independência nacional, do respeito dos direitos do homem, dos direitos dos povos, da igualdade entre Estados, da solução pacífica dos conflitos internacionais, da não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e da cooperação com todos os outros povos para a emancipação e progresso da humanidade.”
 Este artigo estende às relações internacionais o nível de confiança que exigimos na dialógica Indivíduo-Comunidade-Estado. Sem ela, também nas relações com outras comunidades, com outros Estados, haverá lugar para um Poder exercido à revelia, senão mesmo contra, a dignidade de cada ser humano e da soberania dos povos.
 O mundo está inseguro, instável, incerto, cada vez mais complexo e perigoso.
E profundamente contraditório. Vejamos:
Ø De acordo com o Stockholm International Peace Research Institute, as dez multinacionais que em 2013 e 2014 mais vendas de armamento realizaram atingiram, em cada um desses anos, mais de 200 mil milhões de dólares. Sete dessas multinacionais são norte-americanas.
Ø O Estado Islâmico – o Islão político que se serve de uma ideologia religiosa para conquistar, exercer, manter e alargar o seu Poder – constitui uma das mais graves ameaças à paz no mundo. Porém, tanto quanto se sabe, não possui infra-estruturas produtoras do armamento que vem usando.
Ø Em Maio do corrente ano, um relatório do Center for a New American Security (16), dirigido a quem for eleito para a Presidência dos EUA, afirma que é essencial “estender o poder americano” por todo o mundo, com um forte suporte no Poder militar para assegurar a defesa dos seus interesses. Pontos estratégicos para este objectivo: Ásia, Médio Oriente e Europa. Relevante ainda é o reconhecimento de que o Poder económico e político alcançado pelos EUA se iniciou com a produção de armamento para os britânicos e franceses na I Grande Guerra, continuou com a II Grande Guerra e foi reforçado e institucionalizado com o acordo de Bretton Woods e com o Plano Marshall.
Ø Em Junho de 2015 a União Europeia publicou o “Relatório dos 5 Presidentes” (Conselho Europeu, Comissão Europeia, Parlamento Europeu, Eurogrupo e Banco Central Europeu) delineando as orientações para “Completar a União Europeia Económica e Monetária” (17). Entre outros objectivos:
a.     Mais elevado grau de partilha de soberania dos Estados-Membros. (O que significará, de facto, perda de soberania dos Estados-Membros que não acompanham “a França porque é a França” e a “Alemanha porque é a Alemanha”).
b.     Reforço dos poderes do Eurogrupo
c.      Criação de duas novas entidades “independentes”: a Autoridade para a Competitividade e a Autoridade para a Fiscalidade. Serão missões destas autoridades “acompanhar” (isto é, fiscalizar) e “recomendar” (isto é, impor) os desenvolvimentos das respectivas áreas nos diversos Estados-Membros.
Ø É veloz a evolução do Conhecimento, da Ciência, da Tecnologia. No entanto, qualquer destas áreas do Saber necessita de financiamento para a realização dos seus programas. Sendo grande parte desse financiamento privado, a competição para o obter é grande, o que conduz à fragmentação dos Saberes e à sua subjugação ao lucro.
 Tanto mais quanto os próprios “cientistas” financeiros fizeram as suas próprias descobertas:
a.     As operações aritméticas não são quatro, são cinco: somar, subtrair, dividir, multiplicar e… sumir!
b.     A nível da cartografia, substituíram os mapas tradicionais pela “cartografia exceliana”: uma simples “folha de excel”, dotada de “coordenadas flexíveis” que respondem às circunstâncias do momento com grande rapidez e pouco risco.
c.      No âmbito das navegações, descobriram os caminhos informáticos para os paraísos.
Ø Vários artigos do número de Janeiro-Fevereiro de 2015 da Military Review destacaram três questões essenciais com que os militares norte-americanos têm de se confrontar, debater, interiorizar e praticar:
a.     A aprendizagem e a prática do pensamento crítico, como uma resposta essencial à extrema complexidade das situações que terão de enfrentar nas missões que lhes forem atribuídas.
b.     As questões éticas que terão de assumir.
c.      O confronto violento que as mais avançadas tecnologias – os drones – estão a suscitar no que concerne à honra de um militar na guerra.
 Perante estas condições e esta exigência de debate sério e profundo -  que não se reduza apenas à superfície das circuntâncias – onde estão os militares portugueses, para além do que encontramos na nossa Constituição, no Estatuto de Roma (reconhecido no Artigo 7º - nº 7 da Constituição), na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia?
 Pois, estão na Lei Orgânica do Ministério da Defesa Nacional de 2014, mas não como pessoas: são meros “recursos da defesa nacional”.
 E, claro, também estão no Estatuto dos Militares das Forças Armadas, mas com a extrema preocupação de cumprirem o “dever de isenção política”.
 Estamos, assim, em estado de contradição permanente, a que urge pôr cobro:
Ø Como pode um “recurso” ter pensamento crítico e fazer uso dele?
Ø Como pode um militar “cumpridor e obediente” do EMFAR fazer aquelas exigentíssimas opções políticas, se tem de ser “politicamente isento”?
Ø Será que a dignidade humana de cada militar foi “trocada por outra coisa qualquer”, “coisificando-os” em nome de um “preço qualquer”, um qualquer “custo-benefício” calculado por um Poder económico e financeiro que, de condicionante das opções humanas e políticas, se transformou em determinante dessas opções, usurpando o Poder político e pondo-o ao seu serviço?
Ø Se assim é, perante quem se subordina o Poder militar?
Ø Se assim é, perante quem os militares juram o sacrifício da própria vida?
Será possível admitir um elevado grau de ingenuidade nesta reflexão. No fundo, todos estaremos (mais ou menos) conscientes de que a práxis política dos “Estados de direito democrático” segue, há décadas (pelo menos) o que Clement Attlee afirmou em 1957:
            “A democracia significa um governo pela discussão, mas só é eficaz se se conseguir impedir que as pessoas falem.”
 O problema é que a guerra não é uma questão apenas militar, ou apenas política: é uma questão humana que diz respeito a todos os seres humanos.
  As funções soberanas do Estado começam, e acabam, em cada um de nós, como actores protagonistas de um Presente partilhado solidariamente e da construção do Futuro comum que ansiamos.
  Sem assumirmos e praticarmos esse protagonismo, estaremos a abdicar da nossa “inviolável dignidade humana”, da nossa “inviolável soberania”, aceitando que um Poder, interno ou externo as “substitua por outra coisa qualquer”, dependendo esta “coisa qualquer” do preço que estiver a ser “negociado”.
  Que escolha fazemos?

Referências:
(1) Citado no “Documento de Trabalho 26/CNECV/99 – Reflexão Ética sobre a Dignidade Humana”, 5Jan1999, co Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.
(2) Idem.
(3) Citado por André Gustavo Corrêa Andrade in “O Princípio Fundamental da Dignidade Humana e sua Concretização Jurídica”.
(4) Lexicoteca.
(5) A. Almeida de Moura, “Estado e Forças Armadas: vectores humanos do poder”, in “Educar, Defender, Julgar”.
(6) Idem.
(7) Edgar Morin, “O Método V. A Humanidade da Humanidade. A Identidade Humana”.
(8) A. Almeida Moura, obra citada.
(9) Idem.
(10)                 CNECV, obra citada.
(11)                 Daniel Jonah Goldhagen, “A Pior das Guerras. Genocídio, Extermínio e Violência no Século XX”.
(12)                 Idem.
(13)                 Ibidem.
(14)                 Ibidem.
(15)                 Ibidem.
(16)                 “Extending American Power. Strategies to Expand U.S. Engagement in a Competitive World Order”, Center for a New American Security.
(17)                 “Completing Europe’s Economic and Monetary Union”.

     
(Texto apresentado na Conferência "Funções Soberanas do Estado. Em nome do povo, respeito pela Constituição", na Universidade Católica, em 20 de Outubro de 2016. A Conferência foi organizada por 15 estruturas associativas e sindicais, tendo eu participado com este texto, em representação da Associação Nacional de Sargentos, da Associação de Oficiais das Forças Armadas, e da Associação de Praças.)                                                                                                                                                           
                         



Sem comentários:

Enviar um comentário