segunda-feira, 8 de junho de 2015

O Novo EMFAR–Uma Contradição Insanável

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O novo Estatuto dos Militares das Forças Armadas (EMFAR) foi publicado no Diário da República de 29 de Maio de 2015, em consequência da sua promulgação pela pessoa que exerce a função Presidencial.

Quem é esta pessoa? A mesma que, num dos seus primeiros actos após tomar posse, escolheu ser remunerado pelas suas pensões, em detrimento do vencimento correspondente àquela função. Sendo legal esta escolha, ela constitui também, e inequivocamente, uma afirmação de que os seus interesses pessoais estão muito acima do que a Constituição da República define para o cargo: a mais elevada representação política, social, cultural, do Estado e dos Portugueses. Colocar os seus interesses pessoais acima desta representação é um insulto a um Povo inteiro.

Por inerência de funções, cabe à mesma pessoa o Comando Supremo das Forças Armadas.

Foi nestas duas vertentes do cargo que ocupa que esta pessoa promulgou o EMFAR, um acto que é da sua exclusiva responsabilidade. No entanto, não se coibiu de afirmar que as Chefias Militares tinham participado na elaboração deste Estatuto. O facto de as Chefias Militares terem participado nessa elaboração, e a forma como o fizeram, não é determinante para o acto da promulgação, uma vez que, mesmo se no limite se verificasse absoluta concordância entre todos os participantes, nomeadamente o governo e as Chefias Militares, o poder que, neste âmbito, reside na função Presidencial, permitiria que, em caso de discordância pessoal, o diploma não fosse promulgado.

A pessoa que desempenha o cargo de Presidente da República não pode, em circunstância alguma, eximir-se às suas responsabilidades, escudando-se em estruturas e funções que lhe estão subordinadas. É feio. E põe em causa a confiança que aquela função exige.

As situações acima descritas são tão mais graves quanto o EMFAR contém, dentro de si, uma violenta e insanável contradição: a que existe entre os seus Artigos 7º, “Juramento de bandeira”, e 12º, “Deveres especiais” – alínea i) “O dever de isenção política”.

Que pesada contradição, que incompatibilidade, é essa? Vejamos:

. O Artigo 7º define o Juramento que todos os militares fazem, individualmente, perante o Povo a que pertencem;

. Neste Juramento é afirmado, explicitamente, que a acção dos militares, de cada militar, pode ir até ao limite do “… sacrifício da própria vida.”;

. Seria estultícia alguém presumir que os militares, cada militar, jura sacrificar a própria vida por sofrer de uma qualquer patologia suicida;

. Por outro lado, também neste Juramento se afirma “Juro defender a minha Pátria e estar sempre pronto(a) a lutar pela sua liberdade e independência…”;

. Só há uma interpretação para esta frase: trata-se de combater um inimigo. E se, nesse combate (com armas letais), o militar pode morrer, também pode matar;

. Seria, de novo, estultícia alguém presumir que os militares, cada militar, jura matar o inimigo (um outro ser humano) por sofrer de uma qualquer psicose assassina.

Não! Ambas as escolhas – morrer, matar -, objecto deste Juramento, só são compreensíveis, só têm sentido, só honram os militares e o Povo a que pertencem se: forem solidamente suportadas por Valores e Princípios em que todos, militares e Povo (cidadãos) se revejam e reconheçam como seus, através dos quais todos se identificam com um Passado comum, vivem um Presente que partilham dia a dia, anseiam um Futuro comum, e querem construí-lo em conjunto; esses Valores e Princípios estiverem ameaçados por um inimigo externo, colocando em risco o Presente e o Futuro de todos.

Uma escolha destas, baseada em tais Valores e Princípios, é a mais exigente escolha política que alguém pode fazer!

Como pode esta exigentíssima opção política ser compatível com “O dever de isenção política” inscrito no Artigo 12º, alínea i)?

É impossível este co-existência! Um destes artigos tem que ser eliminado, sob pena de todo o EMFAR ficar refém de uma contradição que abre portas às mais ambíguas e díspares interpretações.

E esta contradição é exponencialmente agravada se recordarmos o Estatuto de Roma, que sustenta a acção do Tribunal Penal Internacional, e que o nosso País ratificou, o que significa que é uma Lei a que Portugal se obrigou a cumprir.

Neste Estatuto encontram-se tipificados, entre outros, os “Crimes contra a Humanidade” (Artigo 7º) e os “Crimes de guerra” (Artigo 8º). Por outro lado, define o que se entende por “Responsabilidade criminal individual” (Artigo 25º), e por “Responsabilidade dos chefes militares e outros superiores hierárquicos” (Artigo 28º). Neles podemos constatar que, quer na sua elaboração, quer na acção concreta de os cumprir e fazer cumprir, toda a sua estrutura assenta em Valores e Princípios reconhecidos, aceites e defendidos por múltiplas comunidades, por todo o mundo.

Assim, a solução efectivamente correcta para ultrapassar esta violenta contradição dentro do EMFAR seria a de substituir a alínea i) do Artigo 12º por “O dever de isenção partidária”. Um dever que, aliás, estava presente no anterior EMFAR.

Mas o EMFAR é um dos diplomas essenciais para enquadrar o Poder Militar como um dos pilares fundamentais do Estado de Direito e Democrático. Isto é, o enquadramento político do Poder Militar passa pelo EMFAR.

Nesta perspectiva, seria expectável que o topo deste enquadramento político do Poder Militar residisse no Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas. No entanto, não foi essa a opção tomada pela pessoa que desempenha aqueles cargos: preferiu lembrar a posição das Chefias Militares no processo de elaboração deste EMFAR, menosprezando a sua responsabilidade como superior hierárquico (Estatuto de Roma), e a sua exclusiva competência para promulgar uma Lei deste teor (Constituição da República).

Por outro lado, com a recente Lei Orgânica do Ministério da Defesa Nacional, que extingue a Direcção-Geral de Pessoal e Recrutamento Militar, e cria a Direcção-Geral de Recursos da Defesa Nacional, o governo “transformou” pessoas (os militares) em meros “recursos”, isto é, instrumentos, meios, “coisas”, que a Defesa Nacional tem à sua permanente disposição, para “utilizar” se, quando, sempre que necessário.

Desta forma, juntando a sua definição como instrumentos, ao dever de isenção política, aos militares fica apenas reservado o “cumprimento adequado das ordens e missões, devidamente suportado por um “saber o que pensar” em tudo semelhante à acção desenvolvida por burocratas acéfalos que se supõem isentos de responsabilidades pelo que fazem (ou omitem fazer) porque…”não há alternativas”. É esta a atitude assumida pelos “técnicos” do Fundo Monetário Internacional, do Banco Central Europeu, da Comissão Europeia que, afirmando “saber o que pensar”, transformam o que não são, não podem ser, mais do que factores condicionantes de decisões políticas que afectam o Presente das Comunidades, em factores determinantes dessas mesmas decisões, colonizando o Futuro dessas Comunidades, desumanizando a Política, travestindo-a de mera estrutura “obedientemente ao serviço” da técnica e da burocracia, elas próprias deificadas em favor de interesses pessoais e de grupos restritos, já tantas vezes demonstradamente obscuros, ilegítimos, criminosos.

Pode ser que nos “corredores” de Bruxelas, ou de Berlim, ou de Lisboa, esta presunção de irresponsabilidade tenha como consequência a absoluta impunidade.

(Um parêntesis para perguntar: Há, em Portugal, muitos milhares de crianças com fome. Quem é responsável? Ou “não há alternativa”?)

Mas um militar que, num confronto real, concreto, directo, cometa um acto susceptível de ser considerado um “Crime de guerra” ou um “Crime contra a Humanidade”, não pode fugir à sua responsabilidade individual pelo acto cometido. Nem os seus superiores hierárquicos, militares ou outros. É-lhe, é-lhes, exigido “saber como pensar”, isto é, ir muito mais além do automatismo acéfalo de usar uma arma, qualquer que ela seja.

Porque estamos, inescapavelmente, perante uma opção definitiva:

. Ou escolhemos o campo dos Valores e dos Princípios, da sua prática, e da sua defesa intransigente, a todos os níveis hierárquicos (militares e outros), em nome de um Futuro que ansiamos Digno, Livre e Humano;

. Ou, pelo contrário, escolhemos o campo dos interesses (sempre pessoais e de grupos restritos), a sua defesa “custe o que custar”, abdicando de “saber como pensar”, e assumindo o menor esforço de apenas “saber o que pensar”, numa ilusória irresponsabilidade pelos actos (ou omissões) cometidos.

Se prevalecer esta última opção, então a inscrição do Juramento de bandeira no EMFAR deixaria de fazer sentido, devendo ser eliminado.

De facto, reduzidos à condição de meros instrumentos, de “coisas”, aos militares não seria reconhecida a capacidade de, por si próprios, assumirem quaisquer responsabilidades por actos por si praticados. Mas serão os “outros superiores hierárquicos”, identificados pelo Estatuto de Roma, capazes de assumir, por inteiro, essas responsabilidades, ou o propósito “escondido” será levar a redução da Dignidade dos militares até ao limite insuportável da…escravatura?

Claro que tal solução significaria também a extinção das Forças Armadas.

Nota Final: Como “curiosidade”, recordemos que o EMFAR contido no Decreto-Lei nº 34-A/90, de 24 de Janeiro, foi objecto de prévio debate pelos militares, nomeadamente os que se encontravam no Activo e nas unidades onde prestavam serviço…

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