terça-feira, 23 de setembro de 2014

Discurso nas Comemorações da Revolta dos Marinheiros de 1936

 

 

discurso

 

Exmo. Senhor

Presidente da Associação de Praças

Presidente do Clube de Praças da Armada

Ilustres Convidados

Minhas Senhoras Senhores

O convite para estar aqui convosco, neste lugar, a comemorar o Vosso aniversário, e o da Revolta dos Marinheiros de 1936, constitui uma enorme Honra para mim, e faz-me sentir um privilegiado. Tentarei merecer essa Honra e esse Privilégio.

Em Setembro de 1936 as circunstâncias que definiam o modo de vida dos Portugueses, eram duríssimas: pobreza generalizada, elevadíssimo nível de analfabetismo, profundo isolamento do interior do País, ausência de meios de comunicação, péssimas condições de saúde pública, rede eléctrica quase inexistente, terríveis taxas de mortalidade infantil.

Mas outras circunstâncias se sobrepunham a estas, colocando a vida do nosso Povo pouco acima da sobrevivência. De facto, era o tempo da consolidação da ditadura de Salazar, impondo fortíssima e desumana repressão, perseguindo sem restrições todas as vozes que, de algum modo, se atrevessem a clamar contra as arbitrariedades cometidas, e criando um clima de medo em toda a Comunidade, como forma de manutenção do poder ditatorial.

Era também o tempo em que, na Europa, se tornavam visíveis múltiplos sinais de que uma guerra varrendo todo o continente poderia ser o único caminho para resolver as profundas divergências entre os países, e as próprias contradições internas.

Era o tempo das vitórias das Frentes Populares, em França e na Espanha, trazendo novas esperanças de um Futuro mais Digno, mais Humano, às populações europeias.

Era o tempo da Guerra Civil em Espanha, como expressão máxima de até onde poderiam ir as formas de defesa dos interesses dos poderosos: destruir, por todos os meios, quaisquer manifestações de Liberdade e de Democracia no viver das Comunidades. Porque apenas “os mais fortes tinham direito à Liberdade”.

A Revolta dos Marinheiros aconteceu como um grito de Basta! a tantas e tamanhas arbitrariedades, a tanta repressão, a tão poucos, a nenhuns, direitos!

Alguns factos ajudaram a que esse grito se soltasse: a prisão, e condenação, de cerca de 20 marinheiros que tinham afirmado a sua solidariedade com os seus camaradas espanhóis que apoiavam a Frente Popular; as degradantes condições de vida a bordo, mesmo nos navios mais modernos; o rancho, colocado ao nível da escravatura.

É verdade que a Revolta destes Marinheiros não saiu vitoriosa. A repressão que se lhe seguiu foi violentíssima, com mortes, assassínios, prisões sem julgamento. O Tarrafal foi uma das prisões que a ditadura escolheu “para dar o exemplo” a todos os que tivessem a veleidade de se opor ao governo.

Mas é também verdade que o fundamento último desta Revolta foi, sem margem para dúvidas, a defesa da Dignidade dos Marinheiros, de cada um e de todos, como Seres Humanos que exigiam ser reconhecidos e respeitados.

Hoje, as circunstâncias em que vivemos alteraram-se muito. O tempo de uma viagem de comboio entre Lisboa e Porto, em 1936, é igual ao tempo que levamos de Lisboa até “ao outro lado do mundo”. As tecnologias de informação e comunicação possibilitam que os nossos Afectos se abracem, mesmo quando estamos a milhares de quilómetros uns dos outros. O analfabetismo reduziu-se drasticamente, bem como a taxa de mortalidade infantil. Há partidos políticos que nos propõem caminhos diversos para o nosso Futuro, e nos quais podemos votar. Podemos expressar as nossas opiniões, individualmente ou num qualquer colectivo.

Será isto suficiente para sentirmos plenamente realizada a Dignidade por que lutaram os Marinheiros de 1936?

Einstein escreveu um dia que “É escandalosamente óbvio que a nossa tecnologia excede a nossa Humanidade”.

Quer isto dizer, a meu ver, que a resposta àquela pergunta não pode ficar reduzida ao nível do bem-estar físico e material a que possamos aceder. A nossa Humanidade exige muito mais do que isso.

O mundo em que vivemos é extremamente complexo, interdependente, global. Cada um dos nossos actos, das nossas palavras, interage, em rede, com actos e palavras de outros, de milhões de outros, seres humanos como nós. Diferentes, todos, mas iguais.

Mas é precisamente aqui que não nos estamos a entender, como provam os violentos, dramáticos, injustos, conflitos armados que devastam o mundo inteiro. De facto, todos reclamamos sermos defensores do Direito à Igualdade mas, ao mesmo tempo, temos uma enorme relutância em reconhecer o Direito à Diferença. Como se a Diferença não fosse o que nos torna Humanos, e desse reconhecimento, e com ele, não nos tornássemos Igualmente Humanos.

Estamos a falar de Valores e de Princípios. São os Valores e Princípios em que acreditamos individualmente, e nos quais nos reconhecemos e revemos Inteiros e Livres dentro da Comunidade a que pertencemos, e que suportam o juramento que fizemos, que fazemos, enquanto militares. São Valores e Princípios que, inscritos na Constituição da República, sustentam, e guiam, a nossa Condição Militar.

Tal como em 1936, ser militar é uma exigentíssima opção Política e Humana, assumida individual e colectivamente. Tão exigente que impede que o “sacrifício da própria vida” não se jure, e não se cumpra “se necessário for” senão em nome de Valores e de Princípios definidos e defendidos por toda a Comunidade. Tão exigente que impede que usar o poder que temos se faça para a defesa de quaisquer interesses que não os contidos dentro daqueles Valores e Princípios. Tão exigente que o apartidarismo que juramos impede que possamos aceitar qualquer acefalismo político.

E se é verdade que, nestes 78 anos, o mundo mudou muito, também é um facto que a luta pela Dignidade dos Seres Humanos se mantem como imperiosa. E o poder que cada um de nós, militares, tem nas mãos é tal, que se torna forçoso reconhecermos que estamos na linha da frente dessa luta. Porque não podemos trocar Valores e Princípios por interesses.

Permitam-me um último parágrafo. Afirmei-Vos da Honra e do Privilégio que constituiu para mim o convite para estar aqui convosco. Afirmo-Vos, agora, que ao aceitá-lo, assumi a responsabilidade acrescida de merecer o exemplo de abnegação, de coragem, de Dignidade, que os Marinheiros de 1936 são.

Neste tempo complexo e de luta que continua, deixo os meus votos de uma longa vida de sucessos para a Associação de Praças, para o Clube de Praças da Armada, e para todos Vós.

Obrigado.

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