sábado, 6 de maio de 2017

Abril: Ontem, Hoje, Sempre

                    


Em 25 de Abril de 1974 a fragata “Alm. Gago Coutinho” integrava uma força da NATO que saía de Lisboa rumo a Nápoles. Já passada a ponte, o Comandante da fragata recebe ordem do Estado-Maior da Armada para abandonar aquela força e passar a actuar sob as ordens directas do Alm. CEMA: iniciava-se assim um dia essencial nas vidas dos oficiais, sargentos e praças que constituíam a guarnição do navio. São estes os factos cruciais vividos a bordo nesse dia:
Ø  Em rumo para o Terreiro do Paço, o Imediato informa o Comandante que há um compromisso de neutralidade activa da Marinha para com o Movimento Militar.
Ø  O Comandante recebe ordem do Vice-CEMA para abrir fogo sobre os tanques rebeldes do Terreiro do Paço, pois a Marinha tinha de tomar uma posição contra o Movimento.
Ø  O Comandante, alegando existirem cacilheiros a cruzarem o rio e muitos civis no Terreiro do Paço, não cumpre a ordem. No entanto, ordena ao Chefe do Serviço de Artilharia (CSA)para colocar as peças na máxima elevação (85º), e municiá-las com munições de combate, ao mesmo tempo que inicia manobras do navio a velocidade elevada na zona fronteira ao Terreiro do Paço.
Ø  O Posto de Comando do Movimento é informado do que se estava a passar, pelo que, através da Direcção do Movimento da Marinha, dá ordem para o navio colocar as peças na horizontal e sair a barra ou fundear.
Ø  Cerca das 09h30 o Comandante recebe ordem para fazer fogo de salva para o ar. Dado não existirem a bordo nem peças nem munições de salva, o Comandante dá ordens para municiar as peças com munições de exercício, como consta do Diário Náutico.
Ø  Cerca das 09h45 o Alm. CEMA dá directamente ordem de fogo de salva ao Comandante. Este ordena ao CSA para fazer fogo com munições de exercício para o ar.
Ø  O CSA não cumpre essa ordem e o Imediato informa o Comandante da intenção dos oficiais se recusarem a fazer fogo, mesmo com munições de exercício.
Ø  O Comandante exonera o Imediato. Os dois oficiais que convida para o substituírem recusam.
Ø  O Imediato informa o Movimento que a situação a bordo estava controlada, e que os oficiais se tinham recusado a cumprir a ordem de fogo de exercício dada pelo Comandante.
Ø  Esta informação é passada pelo Posto de Comando do Movimento às Forças do Terreiro do Paço.
Ø  Cerca das 13h30, com o navio fundeado em frente do Terreiro do Paço, o Comandante convoca todos os oficiais para uma reunião na câmara. Após ter inquirido todos os oficiais, um a um, do mais moderno para o mais antigo, sobre se mantinham a sua posição de recusa em abrir fogo, e perante o “SIM” de todos, explicitado individualmente, o Comandante considerou-os insubordinados.
Ø  No final da reunião, que terminou antes da rendição de Marcelo Caetano no Carmo, o Comandante realçou, explicitamente, a necessidade de cada um dos oficiais não se esquecer da posição assumida, pois ele também não se esqueceria.
  43 anos depois, comemorar o 25 de Abril é, também, relembrar estes factos vividos. Mas é, tem de ser, sobretudo, reafirmarmos que a posição que assumimos se sustentou em Valores que reconhecíamos, e reconhecemos, como nossos, que nos foram, e são, imprescindíveis para nos construirmos como Militares, como Cidadãos, como Seres Humanos.
  Comemorar o 25 de Abril é, assim, olhar para o Passado como o ponto de partida para uma viagem, individual e colectiva, que nos situa neste Presente que urge compreendermos, para podermos, com autonomia e independência, fazer as nossas escolhas, de novo individuais e colectivas, e rumarmos a um Futuro que possamos afirmar Nosso, mesmo se, e quando, a viagem se faça por rotas diferentes, mas nunca divergentes.
  São aqueles Valores que nos permitem ligar Passado, Presente e Futuro de uma forma coerente, conquanto diversa nas suas expressões vividas. São Valores como os inscritos no Programa do Movimento das Forças Armadas: Democracia, Desenvolvimento, Descolonização.
  Da Democracia podemos dizer que temos vindo a aprender a praticá-la, com mais ou menos sobressaltos, erros, avanços e recuos. Mas é-nos cada vez mais seguro afirmar que rejeitamos o que Clement Attlee disse em 1957: “A democracia é o governo pela discussão, mas só é eficaz se se conseguir impedir as pessoas de falarem”. Não, não é esta a Democracia que queremos. É, sim, aquela que a nossa Constituição define como Democracia Participativa.
  De facto, a Democracia não pode, não deve, esgotar-se no exercício de processos eleitorais. Nem ficarmos apenas em situação de “governação pelo Povo” – como se os governantes, porque eleitos, fossem substitutos do Povo; e de “governação para o Povo” – numa forma paternalista (no mínimo) de dizer que o Povo é incapaz de governar.
  Falta-nos construir a Democracia Com o Povo, aquela que consubstancia a efectiva soberania do Povo, como impõe a Constituição.
  Do Desenvolvimento podemos relevar o extraordinário avanço em relação ao “antes do 25 de Abril”. Porém, é imperioso reflectirmos sobre muitas das escolhas feitas, e analisarmos com realismo e profundidade as consequências dessas escolhas, pois nos trouxeram a um Presente doloroso, angustiante e extremamente desigual quanto à vida real da esmagadora maioria dos portugueses.
  Porquê? Porque de um Desenvolvimento inicial que centrava nas pessoas as suas acções e escolhas, apoiadas por instrumentos económicos, financeiros, jurídicos que condicionavam as decisões a tomar, passámos a um “desenvolvimento” determinado por aqueles instrumentos – pelos seus donos -, secundarizando, e mesmo marginalizando e excluindo, as pessoas.
  Falta-nos re-assumirmos, de facto, que são as pessoas, a Comunidade inteira, o cerne das acções e opções da governação e do Desenvolvimento.
  Da Descolonização registamos a Independência das ex-colónias e a constituição da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, como expressões da concretização deste “D” do Programa do MFA. Mas hoje confrontamo-nos com um outro tipo de descolonização – o Nosso!
  Pois não é verdade que, nesta União Europeia, nos dizem que “A França é a França”, numa fórmula tosca de confirmar que nela há “uns países mais iguais que outros”? E que a Alemanha não se coíbe de “exercer o comando” sempre que questionada, mesmo timidamente? E não é verdade que são, mais uma vez, os instrumentos – a “união económica e monetária”, o “euro”, o “tratado orçamental” – a determinar as escolhas, menosprezando, mesmo desprezando – Grécia, Portugal – as pessoas? A “periferia” onde é colocado Portugal não será uma forma “delicodoce” de afirmar a situação de “colónia” do nosso País?
  Falta-nos impor o cumprimento da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, nomeadamente quando explicita:
“Consciente do seu património espiritual e moral, a União baseia-se nos valores indivisíveis e universais da dignidade do ser humano, da liberdade, da igualdade e da solidariedade; assenta nos princípios da democracia e do Estado de direito. Ao instituir a cidadania da União e ao criar um espaço de liberdade, de segurança e de justiça, coloca o ser humano no cerne da sua acção.
A União contribui para a preservação e o desenvolvimento destes valores comuns, no respeito pela diversidade das culturas e das tradições dos povos da Europa, bem como da identidade nacional dos Estados-Membros e da organização dos seus poderes públicos aos níveis nacional, regional e local; …”
  Vivemos num mundo incerto, inseguro, instável, perigoso. Os Valores que sustentaram as nossas escolhas no 25 de Abril, e que sustentam hoje o modo como olhamos criticamente o Presente, ansiosos por construirmos um Futuro  de efectivo bem-estar, seguro e solidário, estão inscritos em múltiplos documentos nacionais e internacionais – a nossa Constituição, a Constituição alemã, a Carta Internacional dos Direitos Humanos, são alguns exemplos -, não podem ser meras palavras vãs para uso em discursos oficiais como “manto diáfano” para “tapar a nudez” dos interesses que nada têm de democráticos, nem de solidários, numa afirmação clara de que o que, de facto, o que está em causa é o exercício do “Direito do Mais Forte à Liberdade” (Rainer Fassbinder).
  Voltemos à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia:
“Capítulo I – DIGNIDADE – Artigo 1º - Dignidade do ser humano
A dignidade do ser humano é inviolável. Deve ser respeitada e protegida.”
  Hoje é crucial acrescentarmos este “D” para continuarmos Abril: a Dignidade do Ser Humano é o Valor mais alto por que temos que continuar a lutar.
  Uma luta exigente, difícil, duríssima.
  É uma luta universal, pois a barbárie é praticada por todo o mundo, bem ao contrário do que nos diz a Carta Internacional dos Direitos Humanos:
“Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”
  Mas é uma luta que é imprescindível continuar a travar. Se a perdermos ou, sequer, se abdicarmos dela, perderemos o Futuro que ansiamos Livre, Inteiro, Solidário, Nosso.

 Comemorar o 25 de Abril é assumir que exigimos ser protagonistas activos na construção desse Futuro.

Publicado no Blog AbrilAbril.

Sem comentários:

Enviar um comentário